Joaquim
Manuel de Macedo (1820-1882), médico, escritor, dramaturgo e jornalista carioca,
famoso autor de A Moreninha, obra que
em 1844 traçou a estreia do romance nacional brasileiro, escreveu em 1869 (século
XIX) A Luneta Mágica, menos conhecida
do que a primeira, mas cabendo aqui sobre ela uma boa “matutada”.
A
obra tem como narrador e personagem central Simplício, que inicia: “Chamo-me
Simplício e tenho condições naturais ainda mais tristes do que o meu nome.
Nasci sob a influência de uma estrela maligna, nasci marcado com o selo do
infortúnio. Sou míope; pior do que isso, duplamente míope, física e moralmente.”
De
fato, Simplício não enxergava a um palmo do nariz (miopia física), o que não
permitia que visse imagens e aparências, ou seja, não teria condições de
“julgar pelas aparências”. E, sabe-se lá, devido a isso ou à coisa nenhuma,
também não conseguia associar ideias (miopia moral), o “Lé com o cré”, como
dizem na boa e colorida linguagem do cotidiano, dando a impressão de ser um
parvo, um bobo, não ter opinião sobre nada, absolutamente. Daí, seu maior
sonho: poder ver as coisas como elas realmente eram – como se fosse
isso possível...
Aparentemente
–
irônico isso –
lhe bastaria um par de óculos. Como tinha recursos, não seria problema, mas já
havia experimentado vários e nada. Foi quando lhe apresentaram um mago Armênio,
residente na rua do Hospício, que se dizia com o poder de lhe oferecer uma
luneta mágica –
entendendo que a “luneta” a que se refere o livro é um monóculo – que deveria ser
usada apenas durante três minutos, advertência do mago, pois a partir de então,
seu possuidor passaria a ter a “visão do mal”, ou seja, ver o mal de todas as
coisas e pessoas. E, com mais de 13 minutos, ele teria também o poder de
enxergar o futuro e, então, a luneta se despedaçaria. Huuummm.
Foi
quando Simplício, como é absolutamente humano e imperfeito, desobedece a ordem
de não ultrapassar os três minutos e descobre então toda a maldade e rudeza de
um mundo, despertando o seu espírito de sonolenta inocência.
Num
segundo momento, recebe outra luneta, com os mesmos atributos, só que, ao invés
de ter a “visão do mal”, tem a “visão do bem”, passando a ver apenas o lado bom
de tudo e de todos.
Não
irei oferecer aqui mais spoilers. Já
basta. Que os interessados leiam Macedo, ele merece. Comecemos então a pensar nessa
simplícica visão do bem e do mal.
Ora,
Macedo, em um momento de seu livro, como costume, filosofa:
“A
exageração degenera os sentimentos, desvirtua os fatos, desfigura a verdade. Exagerar é mentir. No mundo há o bem e
o mal, como há na vida o prazer e a dor. Mas o bem é o bem, o mal é o mal como
eles são e não podem deixar de ser para a humanidade que é imperfeita: perfeito
bem, absoluto mal não há para ela. [...] homens absolutamente maus ou absolutamente
bons não são possíveis, nem se compreendem. Estudar o mundo e os homens,
observando-os pela enfezada lente do pessimismo é tão perigoso e falaz como
estudá-los observando-os pelo imprudente prisma do otimismo.”
O
povo também brasileiro, tão incipiente de leitura e de maquinário intelectual, sem
opiniões ou julgamentos próprios –
pelo menos os mais elaborados –,
como Simplício, tão facilmente conduzido por aquilo que aparentemente se vê, ou
pelo que as suas lunetas televisivas e/ou midiáticas apresentam num alardeado
pessimismo ou otimismo, conforme interesses e objetivos de quem as dominam
[refiro-me, prestem atenção, às lunetas], parece perdido, numa caravana de ódio
e de desespero, precipitado como os bárbaros nos tempos mais remotos, movido
por instinto de sobrevivência, raivoso e aguerrido numa batalha gratuita em
campo aberto –
porém com protetor solar de farmácia –,
numa disseminação de inverdades, tomado pelo show pirotécnico do grande coliseu
judiciário, embasbacado com o espetáculo da corrupção, como se, pela primeira
vez, lhe fosse desvendada a maldade humana. Haja Cabral... Quanta inocência.
O
povo noveleiro, sempre imerso na sua ridícula vida individual, com a barriga
cheia de si e dos seus, na busca dos penduricalhos materiais, de repente se vê
convocado pelos titãs –
os manda-chuvas e pais adotivos da maracutaia – que sempre lhe comandaram a vida.
E ele, povo ignaro, de então, acha-se militante, coloca a camisa da corrupta CBF,
representando o que chama de sua pátria, “ó mãe tão esquecida”, mas sem
reconhecer-lhe a maternidade, a agride com verborragia desnecessária, contraditória,
ensandecida, nunca que preocupado com seu país, com os famintos ou
desassistidos, mas com o calo que lhe é apertado por aquele Nike comprado no
shopping dos brilhantes.
Ou
aquele povo, aquele que se insere nas ditas lutas sociais, que grita, berra,
anda de alpercatas –
porque esconde os sapatos italianos para outras ocasiões – mas que na
verdade tem pretensões de vagas e cargos no governo, que defende a SUA camisa,
o SEU partido e não o seu país e/ou aqueles filhos mais explorados ou excluídos.
Aquele que se diz –
e às vezes acredita mesmo –
“politizado”, mas na verdade é apequenado pelo seu ideal individual de
crescimento ou parasitismo político, tal qual aqueles que ali estão
desembarcando do atual governo, feito ratos, sem merecer os votos que receberam
nem as calças que vestem.
São
iguais. Ambos os “povos”. Usando as lunetas que lhes deram, veem o bem e/ou o
mal a seu bel prazer, como lhe convém. Julgando-os como absolutos, criando uma batalha
sem sentido com palavras bonitas como “democracia”, que poucos sabem o que
representa a não ser o seu querer único e indivisível. Seu egoísmo pátrio de
torcida organizada.
Resta-nos
saber que entre um povo e o outro existem pessoas dignas, honradas, críticas,
sérias. Pessoas com princípios que não precisam ou não vivem para uma coisa ou
outra, mas têm a noção do outro, da divisão, são sensíveis e defendem o seu
país por entenderem o que é chão, semeadura e colheita. São pessoas bem
formadas, não necessariamente com diplomas ou letradas, com caráter, curiosas e
sedentas da descoberta da liberdade, da fraternidade e da união.
A
guerra que assistimos hoje é insana e nós a criamos durante anos, como uma
doença que silenciosamente nos toma de repente, fruto de um movimento histórico
e social de alienação, de capitalismo predador – como se existisse outro tipo –, ganância,
ambição, de adoração e manutenção daquilo que nos consome, que consumimos e que
desperdiçamos, numa mentira não tão dura até ser contada para nós mesmos.
Quanto
de mal ou de bem trazemos conosco? Quem é bom ou ruim nessa história?
A
luneta do bom senso é a melhor, mas pertence a poucos. Cuidado, meus amigos e
amigas: “Exagerar é mentir!”