quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Os monstros da direita

Hoje é dia 28 de dezembro, dia em que, no ano de 1990, foi editada a lei de criação do SUS. Entre outras medidas sociais de nossa Constituição, o SUS foi mais uma medida que aumentou as obrigações do Estado brasileiro. 

Sou médico desde o final de 2007. Logo após formado, tive a oportunidade de trabalhar como médico de família e pude conhecer de perto a realidade de uma população muito pobre e sofrida de meu país. Trabalhei em três municípios do Sertão nordestino, em meu estado, Ceará, ao longo de cerca de dois anos. O que uma experiência de convivência com a pobreza pode trazer para um indivíduo? Certamente muito! Vivendo numa região tão carente, pude presenciar, na prática, muitas questões assistenciais que ocorrem no Brasil. A inspiração deste texto partiu de um relato que li nas redes sociais atribuído a uma colega médica, Júlia Rocha, que afirmava que toda sua ideologia atual veio após uma convivência como médica de família. Dizia ela que, antes de trabalhar com pacientes pobres, era egoísta, homofóbica e contra o bolsa-família. Achava que o feminismo era o oposto do machismo, mas, segundo afirmou, encontrou a salvação e hoje defende todas essas bandeiras da esquerda, o que inclui o financiamento público de campanha. Ao final de seu texto, com o bordão #foramonstros, atribuiu às pessoas ruins a defesa por menor acesso ao sistema público de saúde e o maior tempo de contribuição previdenciária. Afinal, é preciso ser uma pessoa ruim para defender as bandeiras liberais? As pessoas que defendem menos impostos e mais liberdades individuais estão prejudicando os mais pobres?

A maneira mais eficaz de encontrar verdades atualmente é através das pesquisas. Uma boa pesquisa, por sua vez, utiliza um bom método. Uma experiência pessoal, como a dessa minha colega de esquerda, no entanto, pode servir sim de inspiração para que cheguemos às verdades. Minhas dúvidas são: as ideias bem intencionadas da esquerda são mesmo benéficas? A lei do salário mínimo aumenta os salários? O sistema público de saúde provê uma melhor saúde? Defender mais liberdade econômica é maléfico aos trabalhadores? 

A realidade da pobreza

Muitos não conhecem a realidade das cidades muito pobres, mas no Sertão nordestino, um restaurante ou uma lanchonete é às vezes uma raridade. Numa das cidades onde trabalhei, encontrei uma senhora aposentada, D. Tereza, que usava a parte da frente de sua casa para comercializar alguns alimentos, o que ajudava nas contas de casa. Tive a oportunidade de comer pasteis deliciosos ao módico preço de R$ 0,50, que, mesmo em 2009, era muito pouco. Ela trabalhava com sua filha. Num determinado dia, após meu expediente, em busca do pastel, tenho a infeliz surpresa de que a D. Tereza havia fechado seu estabelecimento, pois sua filha fora aprovada num concurso em outra cidade. Questionei à D. Tereza por que ela não chamava alguma outra pessoa para ajudá-la? A resposta dela não sai da minha memória: o que eu ganho com as vendas não me permite pagar um salário registrado. Dizendo de outra forma: o comércio dela gerava renda a ela e sua filha, mas não era suficiente para gerar a ela uma renda pagando um salário a uma pessoa. Nas cidades ricas do país, como São Paulo, não há muitos empregos que oferecem apenas o salário-mínimo, a maioria dos empregos pagam mais. Numa cidade onde um pastel custa R$ 0,50, um salário-mínimo nem pode ser pago. Minha questão: o que é melhor para a cidade pobre: a D. Tereza contratar alguém por metade de um salário mínimo (ou qualquer outro valor) ou a D. Tereza fechar as portas (como fechou)? E para o potencial funcionário da D. Tereza? É melhor receber meio salário mínimo ou é melhor não ter o emprego e receber, em troca, 10% de um salário mínimo (o bolsa-família)? A existência do salário-mínimo, neste caso pontual, foi ruim para D. Tereza, pois ela teve que fechar seu comércio, foi ruim para o eventual empregado, que perdeu a oportunidade, e foi ruim para a cidade, que perdeu uma fonte de renda e impostos. A intenção de obrigar um pagamento mínimo é ótima, mas seus reais efeitos são o oposto da intenção: gera desemprego e estagnação econômica. Pergunto: é melhor defender uma ideia por sua boa intenção ou por seu efeito real?

Tive a feliz oportunidade de atender inúmeros agricultores. Surpreenderam-me, pois eram os mais honestos, os mais trabalhadores, porém, os mais pobres. Muitos me diziam se orgulhar de pagar seu sindicato. Achei isso muito curioso, pois os agricultores não eram, em minha cabeça urbana, uma categoria muito sindicalizada, mas sim autônomos em suas pequenas terras. Perguntei a vários e, depois de um tempo, entendi: eles pagavam o sindicato, mas não recolhiam o INSS. Pagar o sindicato é uma maneira de comprovar a profissão de agricultor, o que lhe concede o benefício de aposentar-se como trabalhador rural, mesmo sem ter pago contribuições previdenciárias. Um dia presenciei uma reunião do sindicato, onde pude escutar todas as frases clichês marxistas, e ouvi os sindicalistas convencendo os agricultores da importância de pagar o sindicato, para que pudessem receber seus direitos. Os agricultores estavam pagando sindicato para se aposentarem, mas o seu pagador, a Previdência, nada recebia. Isso, pela lei atual, não é ilegal.

Mas nem tudo são espinhos na pobreza de meu estado. Eu tive momentos que me trouxeram um enorme sentimento de otimismo. Muitos pacientes que eu atendia não tomavam seus remédios corretamente por não entenderem como fazê-lo. Eu tinha que me desdobrar para tornar minha receita mais eficaz: diminuía a quantidade de remédios, desenhava sol e lua para que os que não liam entendessem ser um comprimido pela manhã e um a noite, enfim, era um desafio diário. Comecei a perceber então que os pacientes acompanhados de seus filhos ou netos tinham uma enorme vantagem: todas as crianças sabiam ler! Passei até a recomendar que viessem acompanhados deles, pois ajudava muito ao paciente que outra pessoa entendesse a receita para que lhe explicasse em casa. Foi um verdadeiro momento de epifania: percebi que as novas gerações estavam com uma vantagem enorme, e que o futuro poderia ser sim promissor!

Algumas tentativas para mitigar a pobreza podem, na verdade, aumentá-la.

Algumas tentativas para mitigar a pobreza e o sofrimento podem, na verdade, aumentá-la! Quando um defensor do agricultor pobre afirma que ele tem o direito de se aposentar aos 55 anos mesmo sem ter contribuído à Previdência, pois há recursos do PIS, COFINS, CSLL e imposto de importação, como manda a Constituição, esse defensor precisa saber que quem paga esses impostos são pessoas como a D. Tereza, dos pasteis. Ajudar o agricultor é muito importante, mas isso não pode custar o negócio da D Tereza, pois, assim, o resultado será o oposto à intenção. Além disso, quando um governo gasta 30% do orçamento com previdência, mas apenas 6% com educação, ele está sendo filantropo, porém, não está resolvendo a pobreza. Quando alguém defende o aumento (ou a existência) do salário mínimo, involuntariamente, esse alguém está defendendo um maior desemprego. Não é minha opinião, são as consequências inevitáveis do sistema voluntário de trocas comerciais da humanidade. Numa cidade onde o salário mínimo for maior do que a capacidade de o empregador pagar, haverá uma menor oferta de empregos.

O discurso de que é por falta de coração que pessoas defendem políticas econômicas mais liberais e menos estatizantes é falso!

Conhecer a pobreza, ver nos olhos do outro suas necessidades básicas, deve, sim, sensibilizar as pessoas de bem! O que fazer para diminuir esse sofrimento, no entanto, deve ser bastante estudado para que seja eficaz. Um liberal, quando defende o fim do salário mínimo, está lembrando da D. Tereza, que poderia tornar viável o seu pequeno comércio de pasteis! A defesa de uma previdência pública mais enxuta tem o objetivo de poupar os gastos públicos, pois, para pagar um direito de alguém que não contribuiu para isso, será tirado dinheiro de um outro (a D Tereza pagar COFINS para a Previdência poder pagar a aposentadoria do agricultor), além de coibir o jeitinho brasileiro (o agricultor pagar para um sindicato ao invés de pagar para a Previdência). A esquerda não tem o monopólio da virtude. O discurso de que é por falta de coração que pessoas defendem políticas econômicas mais liberais e menos estatizantes é um discurso falso ou ignorante. É por conhecer a pobreza, é por conhecer o sofrimento dos outros que os liberais defendem as políticas liberais.

O verdadeiro gerador de riqueza e progresso é o indivíduo, seja o agricultor, o comerciante ou o industrial. Quanto mais valor o indivíduo consegue produzir, maior o enriquecimento da população. A medida de maior impacto no aumento da riqueza é conseguir produzir mais com o mesmo custo (produtividade) e, para isso, são necessárias ferramentas e invenções provenientes da educação. Gasto público em qualquer área pode trazer impactos bons ou ruins por muito ou pouco tempo, mas um gasto que gera impactos positivos que se multiplicam sozinhos é o gasto com a educação. O Estado pode, sim, ser uma instituição a quem recorrer numa situação de necessidade, mas, por ser sempre menos eficiente, deve ser o último recurso, não o primeiro. A prioridade do Estado deve ser tornar possível aos seus cidadãos realizarem seus afazeres. Faz-se isso ao estimular e promover a educação, por um lado, e ao não atrapalhar com impostos e regulamentações excessivas. Este é o verdadeiro papel do Estado. O Estado ser uma gigantesca e ineficiente instituição filantrópica irá dificultar isso. E não sou monstro por pensar assim.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Resenha: "Todo mundo tem direito a um segredo", de Lia Sanders, por Raymundo Netto


Todo mundo tem direito a um segredo?

“A vida é maior que qualquer literatura.”

Parece que sim, pelo menos é o que afirma o título do romance de estreia de Lia Sanders, escritora, médica e artista plástica, que, curiosamente, é dedicado à dona Lirinha, sua avó, “a maior contadora de histórias”.
Todo mundo tem direito a um segredo, ganhador de menção honrosa no Prêmio Sesc de Literatura e publicado pela editora Substânsia em 2015, é um diário cinematográfico cuja a tela é a mente fluente da protagonista, uma jovem órfã de 25 anos, estrábica, chamada simplesmente de “Neta”, que nunca frequentou escola, mas que escrevia sob pseudônimo no maior jornal da cidade, o Diário do Povo, e que não tinha sequer certidão de nascimento nem carteira de identidade, nem nunca amigos, namorado ou namorada. Residia com a avó Rebeca, sua antagonista, de 86 anos, mulher ríspida, razão de seus “recalques”, e que com ela mantém conflitos regulares durante toda a história permeada de segredos indizíveis, e com a inexpressiva Maria, uma sexagenária, empregada da casa e cúmplice, com seu silêncio, das artimanhas de Rebeca.
O “metalivro” que temos oportunidade de ler seria o fruto de uma encomenda. Rebeca, avó de Neta e dona do jornal em que escreve – mas que não ganha – pagaria, e pagaria bem, para que ela contasse a história de sua vida, “um tristonho livro de memórias alheias”. Entretanto, Neta não consegue sair do picadeiro de papel, trazendo ao texto o seu inconformismo pessoal, suas dúvidas, traumas, confusões, angústias, embates – sabotagens e desconfianças mútuas – com a avó e a ansiedade de desvendar a sua verdadeira identidade e buscar um sentido para sua vida. Afinal, quem era ela realmente? Qual a sua origem? Quem eram aqueles pais? Por quê? Por quês?
Tudo que sabia de si, vinha da boca da avó, pessoa que, segundo ela, não merecia crédito e com a qual disputava autoridade – isso me lembra o texto “Romances Familiares”, de Freud.
Sua mãe morrera no momento do parto. Seu pai se suicidara. Seu avô Joaquim também morrera – outra vítima da avó, dizia ela. Levara “metade da vida para descobrir algo errado com seus pais e a outra metade para acatar as suas ausências”.
Onde a personagem falha na escrita do sua proposta, a autora, ao contrário, é bem sucedida, e adverte em sua apresentação que o livro “foi escrito como quem descobre” e é exatamente assim que, provavelmente, você o lerá.
 No romance, de características psicológicas, o leitor vai enredar-se na trama bem construída, acentuada por um fluxo de consciência peculiarmente feminino – e quase adolescente – em busca de sua autoafirmação, com suspense e tensões que aguçam a curiosidade, provocam reflexão e inquietudes, o que já seria por si um mérito louvável para qualquer escritor. Ademais, não há apenas um, mas um espectro de segredos que nos surgem e nos são revelados aos poucos e, involuntariamente, caímos no trilhar desse mistério que é a vida. Abrir a porta da casa de uma família para expô-la ao público é sempre um risco... de sucesso. No caso do livro de Lia, funcionou.
Não bastasse, Lia convocou entes espirituais e denominou-os de Eurípedes (referência ao poeta grego, que ressaltava em sua obra as inquietações da alma humana, em especial as das mulheres) e Julius (o Higino, referência ao escritor e astrônomo que, entre outros, resumiu enredos de algumas tragédias de Eurípedes), que entre diálogos relativamente humorados assistem aos confrontos de avó e neta, torcem, e chegam a decidir o destino das duas mulheres.
Gostaria de deixar nota também para outro aspecto da obra, que é a possibilidade de repensarmos ou refletirmos sobre o modelo familiar tradicional, entendendo a família como esse conjunto de arranjos sociais e afetivos, beirando en passant as novas configurações familiares, tema de interesse diante da dinâmica social que faz com que reconheçamos as famílias monoparentais, as relações homoafetivas, paternidades e maternidades socioafetivas, entre outras composições não mais tão raras nos dias atuais, rupturas que se tornam um grande desafio para manutenção da tolerância, a promoção da diversidade e o exercício daquilo que apenas apelidamos de amor.
Todo mundo tem, sim, direito a um segredo. Você também deve ter um... na sua estante.

Sobre Lia Sanders
Nasceu em Fortaleza, em 14 de novembro de 1983. Formada em Medicina pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com doutorado em Neurociência Cognitiva / Psicologia pela Humboldt Universität zu Berlin, é também escritora e artista plástica autodidata. Atualmente, divide-se entre Psiquiatria, Literatura e Artes Plásticas. Reside em Fortaleza.   

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quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Matutando (Saudades d)o Brasil: Memórias Afetivo-Musicais 1

“Um dia o Brasil vai ser para você uma grande saudade.” Eu costumava dizer a minha amiga Eliana Vasconcelos, quando ela falava em migrar para os Estados Unidos depois da nossa formatura em medicina. Tendo tido eu mesmo a dor de sair do Brasil duas vezes, a primeira em 1997 e a segunda em 2006, hoje essa saudade é minha também.

E foi essa saudade que transbordou quando convidado a contribuir num blog espertamente chamado Matutando o Brasil. E as primeiras saudades são musicais.


Minha geração nasceu na ditadura e se descobriu adolescente quando o Brasil se descobria democracia. Fizemos a ponte da Bossa Nova para a música de protesto dos festivais e daí para o rock nacional anos 80. Na nossa casa tínhamos aspirações de classe ilustrada com as finanças de proletariado - quem cresceu nessa época conhece bem essa palavra, quem não cresceu pode ir ao Aurélio ou ao Google.  Então tínhamos que ser seletivos na discografia. Os discos - os chamados LPs - que não sabíamos ser long play - formavam então a nossa trilha sonora pessoal, para momentos de conquista ou mais frequentemente para momentos de dor-de-cotovelo. Não sei se essa pode ser a trilha sonora de uma geração mas certamente foi a trilha sonora de um grupo de jovens criados ali pelas imediações da Santos Dummont com Barão de Aracati, circa 1980. 

Foi justamente na entrada desse ano que a Simone gravou um show ao vivo no Canecão e gerou um belíssimo registro, incluindo pérolas como Jura Secreta – Só uma palavra me devora, aquela que meu coração não diz; Começar de Novo – sem contar contigo, vai valer a pena, ter amanhecido; Sob Medida meu amigo, se ajeite comigo e de graças a Deus - numa mistura magistral com Orgulho, Vingança, e Matriz ou Filial, fechando o Lado A com Não Sonho Mais – foi um sonho medonho desses que as vezes a gente sonha. O lado B começava com Maria, Maria - que anos depois iria eleger uma prefeita de Fortaleza; seguindo para Cigarra e para a até então censurada Para Não Dizer que Não Falei das Flores - conhecida como Caminhando e Cantando e a primeira música que se aprendia no violão pois só tem dois acordes Mi menor e Ré maior; daí partia para Aquarela do Brasil e depois Eu To Voltando. Outro LP que marcou nosso juízo foi o Mel da Maria Bethânia, com a forte sensualidade dos Lábios de Mel, Cheiro de Amor, Amando Sobre os Jornais, e ainda Grito de Alerta do Gonzaguinha.  Ainda dessa geração tínhamos coisa do Vinícius - cantando com Toquinho e Maria Creusa - sobre a Tarde de Itapoã e aquele velho calção de banho. Tínhamos dias para vadiar nessa época. O disco incluia ainda o grande Eu Sei que vou te amarque fez uma geracao aprender a declamar “de tudo ao meu amor serei atento” e “que seja eterno enquanto dure”. Havia claro um disco do Chico Buarque - ele cantando aquele inesquecível Sinal Fechado do Paulinho da Viola Olá, como vai? Eu vou indo e você, tudo bem? Fechando com o grande Cartola ensinando que a Vida é um Moinho e que As Rosas Não Falamsimplesmente exalam o perfume que roubam de ti.

Num lance mais eclético tínhamos ainda um disco do Sivuca chamado Cabelo de Milho, que abre com a sabedoria “Tanta água no coco e o riacho tão seco e só” e terminava na Feira de Mangaio. Esse disco tinha inclusive a participação do Fagner - que sempre parecia um primo distante sendo cearense - cantado Nos Tempos dos Quintais.


Assim se fecha essa primeira impressão imprecisa da memória musical dessa enorme saudade.  Esses poucos discos desses grandes artistas, alguns no seu auge de talento e em sintonia com o momento social e politico do Brasil, estavam amadurecendo aqueles ouvidos infantis para a explosão que seria o rock brasileiro. Que fica para o próximo blogpost.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Linguagem nordestina


A Língua Portuguesa, aportada ao Brasil há mais de quinhentos anos, constitui-se um sistema extraordinariamente rico, que permite a comunicação entre os seus atuais 210 milhões de habitantes a despeito das inúmeras variantes de uso espalhadas nas diversas regiões. A unidade na estrutura da língua e a pluralidade revelada nas situações de comunicação pelos falantes são os pilares que asseguram a indispensável grade fixa, comum aos usuários, e a rica diversidade glossológica condicionada por fatores diacrônicos (tempo), diatópicos (espaço) e diastráticos (social). Para exemplificar, a expressão pro mode caracteriza a condição social e talvez econômica do locutor. Por outro lado, o vocábulo bacana, ainda frequente, porém em via de extinção, denuncia mais ou menos a idade do falante, porquanto termo empregado por uma geração mais provecta. E um arrastado abestado provavelmente sinaliza para a inconfundível origem nordestina de um cabra da peste.

Limito a presente anotação a matutar sobre palavras e expressões condicionadas ao fator diatópico, mais precisamente acerca da linguagem peculiar praticado na região Nordeste, o cearês, ou dialeto cearense, que engloba quase todo o Estado (tirante o Cariri), parte do Piauí e parte do Maranhão. Tal dialeto coexiste ao lado de outros, como o baiano, o gaúcho, o amazônico, o recifense, o cuiabano, o florianopolitano.
Torna-se oportuno o registro, uma vez que são inúmeros os falantes de outras localidades, que afluíram em expressivo número na última década para o Estado e por causa do desconhecimento de uma série de palavras e expressões pelo público coestaduano influenciado, entre outros condicionantes, pela linguagem globalizada dos meios de comunicação.

Tais variações dialetais são riqueza do idioma pátrio e sinais peculiares e marcadores de nossa cearensidade.
Eis alguns exemplos do cearês com breves comentários e registros extraídos do cordel.

1.Abortado
Três significados: a) aquele que foi abortado, parido antes da gestação completa. Também indica o que foi produzido antes do tempo. b) malogrado, frustrado, gorado. Exemplos: O negócio foi abortado. O golpe militar foi abortado pelo governo. No cearês, porém, não é nada disso. Abortado se chama o indivíduo de sorte, feliz. Exemplo: Esse cara é um abortado, nasceu com a bunda para a lua.
Veja seu emprego na estrofe de Anilda Figueredo da Academia dos Cordelistas do Crato:
Há sujeito que tem sorte
Mesmo um desmantelado
Escapa de endemia
De polícia e delegado
De acidente e perigo
Pois é aí quando eu digo
Só tendo sido abortado!

2. Afobado
Significados:
pessoa impaciente, agoniada, inquieta, nervosa, apressada, raivosa. Aplica-se ao tipo atrapalhado, avexado, em função de pressa excessiva ou de
impaciência. Exemplos: O jogador afobado chutou a bola para fora. Quem é afobado, come cru ou queima a boca.
Estrofe de Ulisses Germano, cordelista do Crato:
Uma pessoa afobada
É nervosa e inquieta  
Anda sempre agoniada
E tudo em volta lhe afeta  
É no gesto aligeirado  
Que o trejeito do afobado
Perde prumo, perde a reta.


3. Baitinga
Origem:
vem de baitola. Há uma etimologia talvez fantasiosa que diz que o termo nasceu na construção da primeira estrada de ferro no Ceará. O capataz encarregado do assentamento dos trilhos era de origem inglesa e possuía modos efeminados. Tinha ela a preocupação com o espaçamento padrão entre os trilhos, chamado de bitola. Por influência da língua materna em que o i tem o som de ai, gritava com frequência o termo baitola em vez de bitola. Os peões por causa disso começaram a chamar o capataz de baitola.
Significado: homossexual, gay, balde, veado, fresco, bicha.
Empregado também para xingar alguém. Baitinga, apontado em epígrafe, é termo menos ofensivo que os anteriores. Usa-se muito nas brincadeiras entre amigos. Geralmente, não possui conotação depreciativa, dependendo, é claro, da entonação de quem emprega o termo. Exemplo: E aí seu baitinga não vai me emprestar a moto, não?
Estrofe de Bastinha Job (da Academia de Cordelista do Crato)
Digo com convicção
Nem preciso de mandinga
Pois falo com precisão
O sinônimo de baitinga
É o cara afrescalhado
É o popular veado
Tem na rua e na caatinga.


4. Birita
Significado: cachaça, pinga, aguardente, por extensão qualquer bebida alcoólica. Apelido que se acrescenta a um nome de um cachaceiro, como Chico Birita, Manel Birita.
Estrofe de Aldemá de Morais, da Academia dos Cordelistas do Crato
“Birita” é o nome dado
 A um tipo de cachaça
 O caboclo no engenho
Bebe em cuia de cabala
É vendida em botequim
Seus clientes: “papudim”
“Pé inchado” e “arruaça”.

5.Boca quente
Significado: lugar ou situação perigosa.  Exemplos: Rapaz, não vá para aquela favela, porque lá é boca quente. O deputado enfrentou uma boca quente ao conversar com os eleitores.
Estrofes de Josenir de Lacerda, cordelista do Crato:
Um perigo é boca quente
Porco novo é bacurim
Atrevido é saliente
Quem não presta é corja ruim
Dedo duro é cabueta
A perna torta é zambeta
Coisinha pouca é tiquim.
......
Quem se mete em boca quente
Enfrenta risco e perigo
Está sujeito a uma surra
Ou mesmo ao pior castigo
Com encrenca se depara
Termina quebrando a cara
Ou arranjando inimigo.

6. Do tempo do bumba
No tempo do bumba meu boi. Significado: De uma época muito antiga. São do tempo do bumba a época dos bondes em Fortaleza; a escada rolante da Lobrás; o hábito de tomar pega-pinto na Praça do Ferreira, de lanchar no Abrigo Central; comprar nas Casas Pernambucanas do centro da cidade; fumar cigarro Bebê; tomar banho de chuva nas bicas da casa; andar no Circular da Empresa Moreno.
Estrofe de Nezite Alencar (Academia dos Cordelistas do Crato)
O que  é "tempo do bumba"?
É tempo velho passado,
Aquilo que não é mais,
Mas será sempre lembrado
Tudo que saiu de moda
E está no baú guardado.

7. Eita pau
Interjeição usada no Nordeste para exprimir espanto. Há uma tênue distinção entre Eita e Eita pau. Significados: Eita (sozinho) exprime espanto, surpresa, contentamento, vibração, estímulo. Exemplos: Eita, vida. Eita, bicho feio. Eita pau é também espanto, surpresa diante de algo ruim. Diz-se também Eita ferro!
Luiz Gonzaga tem o verso: “Eita, Paraiba, mulher macho sim, senhor”.
Estrofe de Dalinha Catunda da Academia Brasileira da Literatura de Cordel do Rio de Janeiro.
Eita pau! Papai dizia,  
Quando eu fazia besteira:
Esta menina levada
Vai entrar no pau pereira!
Batia, sim, sem ter dó,
Descia mesmo o cipó,
Nesta morena brejeira.

8. Em riba
Riba é a margem elevada de um rio; colina sobranceira a um rio; ribanceira.
Dois significados: a) tudo em cima tudo bem, tudo certo. b) além do mais.
Exemplo: Não me pagou, ainda em riba, me disse uns nomes feios.
Estrofe Bastinha Job (Academia dos Cordelistas do Crato)
 Tá em riba é tá trepado
Aqui no nosso Nordeste
Um termo bastante usado
Na cidade e no agreste
Tô em riba, tô por cima  
Trepo no metro e na rima
E não há quem me conteste.

9. Escambau
Origem provável: no Brasil Império, era comum os portugueses que aqui viviam fazer o escambo, que consistia na troca direta de mercadorias sem o uso de moeda corrente, na maioria das vezes, gêneros de última necessidade, em uma grande feira chamada escambau. A tese mais plausível, porém, é de que o termo deriva a palavra de cambada (porção de coisas, cambulhada), pela “alteração de sufixo para -al, ‘grande quantidade’, e depois grafado com -u, seguindo a pronúncia do -l  final, predominante no Brasil”.
Escambau tem duas acepções básicas. A primeira e mais empregada é a de “mais um monte de coisas”, um “et cetera.” informal e enfático. Refere-se a um conjunto alargado de coisas, mencionadas ou para além das já mencionadas. Exemplo: Saiu de férias levando barraca de camping, fogareiro, papagaio e o escambau. A segunda acepção faz de escambau uma espécie de interjeição de negação, substituindo palavrões em frases como esta: Vítima da sociedade, o fulaninho? Vítima o escambau!
Trova do cordel de Josenir de Lacerda:
Bater fofo é não cumprir
Etecetera é escambau
Sujar muito é encardir
Quem acusa, cai de pau
Confusão é funaré
Carta curinga é melé
Atacar é só de mau.

10. Distreinado
Sentido no cearês: sem graça, encabulado. Exemplo: Depois que fez esta besteira, ficou todo distreinado.
Trova de Josenir de Lacerda, famosa cordelista.
Se o sujeito tá confuso
Tristonho e encabulado
Com vergonha, constrangido
Feito um cão escorraçado
Tem gente que olha e diz:
- Aquele pobre infeliz
Tá sem graça, "distrenado".
11. Xeleléu
Sinônimos: a) babão; baba ovo, adulador, capacho, chaleira, escova botas; lambe-botas.
b) caminhão pau de arara, de retirantes nordestinos.
O termo xeleléu é muito usado também no Rio Grande do Norte e tem um efeito bastante expressivo.
Verso de Josenir de Lacerda, poetisa multicitada: 
A rede velha é fianga
Com raiva é aporrinhado
Careta feia é muganga
Baitinga é mesmo o viado
Bajulador, xeleléu
Sem jeito é malemanhado.

12. Ispiricute
Origem: Influência da presença dos soldados norte-americanos no Ceará. Durante a Segunda Grande Guerra, os americanos usaram durante alguns anos a Base Aérea de Fortaleza como ponto de apoio antes da viagem para o Norte da África e o sul da Itália. Havia as famosas Garotas Coca-Cola, meninas da sociedade local que nos finais de semana se aprontavam para paquerar com os garbosos pilotos e oficiais americanos.
Origem provável: vem do inglês "she's pretty cute".  Usado no Nordeste e termo muito comum no Ceará. Sentidos; Desinibida, faceira, bonitinha, faceira, vaidosa. O termo foi usado no filme Cine Holliúdy de Halder Gomes.
Mais um estrofe de Josenir de Lacerda, multirreferenciada cordelista:
Se cheia de babailoque
É ispiricute ou dondoca
Ligeiro é “que nem um traque”
Agachado é tá de coca
Sem rumo é desembestado
O faminto é esguerado
Bolha na pele é papoca.

13. Abiúdo
Tem sentido pejorativo. É a corruptela de abelhudo (palavra dicionarizada). Trata-se de pessoa curiosa, que quer saber de tudo, fofoqueiro, intrometido, indiscreto, curioso, importuno, indivíduo que se mete nas conversas, dar palpites na vida dos outros. Exemplo: Essa menina é muito abiúda.  
É do cordelista Henrique César Pinheiro este verso:
Ele não é diferente
É também muito abiúdo
Se faz de abirobado
Para se meter em tudo
Também só vive melado
Fedorento, bem imundo.

14. Ruçara
Talvez venha de juçara,(palmeira delgada e alta). O vocábulo é usado por Pedro Nava, que é de origem cearense, no livro Chão de Ferro.
Significa “coceira de origem alérgica. É o comichão produzido pelo contato com diversas espécies de planta com a pele humana, por exemplo com a ramagem do feijão, com o arrozal, milharal, com cipó de fogo.
Ruçara está catalogada entre as doenças que somente nordestino tem, como dores nos quartos, dor nas juntas, difluço, espinhela caída, tosse de cachorro, gastura, dor de viado, vista cansada, estalecido, doença nos nervos, fervião no corpo, passamento, nó nas tripa, frieira,dordói, remela nos zói, curuba, pito frouxo. O cordelista Henrique César Pinheiro registra as dificuldades para se reconhecer doença de nordestino:
Sem conhecer nossa língua
E as doenças tropicais
Que em muitas medicinas
Não faz parte dos anais
Além das dificuldades
Das falas regionais.

Moco, tosse de cachorro,
Caduquice, pé inchado,
Queimadeira, farnizim,
Brotoeja, empazinado,
Ruçara, canela triada,
Vento caído, empachado.

15. Catrevagem
Derivado de catervagem, de caterva (grupo de pessoas, de animais ou de coisas, de pessoas ordinárias, desordeiras, malta, súcia). Três sentidos: a) grande quantidade de objetos; sobras de material de construção; sucata; objetos sucateados. Coisas em desuso, sem serventia.  Resto de coisas velhas reunida em determinado lugar. b) reunião informal, encontro casual, bate-papo divertido, animado. c) mulher feia, magra, que ninguém quer mais.
Verso de Carlinhos Cordel (de Pernambuco)
Distração, brincadeira
Lá se chama fulerage
Também algo que não presta
Porcaria ou catrevage
O Ceará tem cultura
E uma bela linguagem.