Todo
mundo tem direito a um segredo?
“A
vida é maior que qualquer literatura.”
Parece que sim, pelo menos é o que afirma o título do romance de
estreia de Lia Sanders,
escritora, médica e artista plástica, que, curiosamente, é dedicado à dona
Lirinha, sua avó, “a maior contadora de histórias”.
Todo mundo tem direito a um segredo,
ganhador de menção honrosa no Prêmio Sesc de Literatura e publicado pela
editora Substânsia em 2015, é um diário cinematográfico cuja a tela é a mente
fluente da protagonista, uma jovem órfã de 25 anos, estrábica, chamada
simplesmente de “Neta”, que nunca frequentou escola, mas que escrevia sob
pseudônimo no maior jornal da cidade, o Diário
do Povo, e que não tinha sequer certidão de nascimento nem carteira de
identidade, nem nunca amigos, namorado ou namorada. Residia com a avó Rebeca,
sua antagonista, de 86 anos, mulher ríspida, razão de seus “recalques”, e que
com ela mantém conflitos regulares durante toda a história permeada de segredos
indizíveis, e com a inexpressiva Maria, uma sexagenária, empregada da casa e
cúmplice, com seu silêncio, das artimanhas de Rebeca.
O “metalivro” que temos oportunidade de ler seria o fruto de uma
encomenda. Rebeca, avó de Neta e dona do jornal em que escreve – mas que não
ganha – pagaria, e pagaria bem, para que ela contasse a história de sua vida,
“um tristonho livro de memórias alheias”. Entretanto, Neta não consegue sair do
picadeiro de papel, trazendo ao texto o seu inconformismo pessoal, suas
dúvidas, traumas, confusões, angústias, embates – sabotagens e desconfianças
mútuas – com a avó e a ansiedade de desvendar a sua verdadeira identidade e
buscar um sentido para sua vida. Afinal, quem era ela realmente? Qual a sua
origem? Quem eram aqueles pais? Por quê? Por quês?
Tudo que sabia de si, vinha da boca da avó, pessoa que, segundo
ela, não merecia crédito e com a qual disputava autoridade – isso me lembra o
texto “Romances Familiares”, de Freud.
Sua mãe morrera no momento do parto. Seu pai se suicidara. Seu avô
Joaquim também morrera – outra vítima da avó, dizia ela. Levara “metade da vida
para descobrir algo errado com seus pais e a outra metade para acatar as suas
ausências”.
Onde a personagem falha na escrita do sua proposta, a autora, ao
contrário, é bem sucedida, e adverte em sua apresentação que o livro “foi
escrito como quem descobre” e é exatamente assim que, provavelmente, você o
lerá.
No romance, de características psicológicas, o leitor vai
enredar-se na trama bem construída, acentuada por um fluxo de consciência
peculiarmente feminino – e quase adolescente – em busca de sua autoafirmação,
com suspense e tensões que aguçam a curiosidade, provocam reflexão e
inquietudes, o que já seria por si um mérito louvável para qualquer escritor.
Ademais, não há apenas um, mas um espectro de segredos que nos surgem e nos são
revelados aos poucos e, involuntariamente, caímos no trilhar desse mistério que
é a vida. Abrir a porta da casa de uma família para expô-la ao público é sempre
um risco... de sucesso. No caso do livro de Lia, funcionou.
Não bastasse, Lia convocou entes espirituais e denominou-os de
Eurípedes (referência ao poeta grego, que ressaltava em sua obra as
inquietações da alma humana, em especial as das mulheres) e Julius (o Higino,
referência ao escritor e astrônomo que, entre outros, resumiu enredos de
algumas tragédias de Eurípedes), que entre diálogos relativamente humorados
assistem aos confrontos de avó e neta, torcem, e chegam a decidir o destino das
duas mulheres.
Gostaria de deixar nota também para outro aspecto da obra, que é a
possibilidade de repensarmos ou refletirmos sobre o modelo familiar
tradicional, entendendo a família como esse conjunto de arranjos sociais e
afetivos, beirando en passant as novas configurações familiares,
tema de interesse diante da dinâmica social que faz com que reconheçamos as
famílias monoparentais, as relações homoafetivas, paternidades e maternidades
socioafetivas, entre outras composições não mais tão raras nos dias atuais,
rupturas que se tornam um grande desafio para manutenção da tolerância, a
promoção da diversidade e o exercício daquilo que apenas apelidamos de amor.
Todo mundo tem, sim, direito a um segredo. Você também deve ter
um... na sua estante.
Sobre
Lia Sanders
Nasceu em Fortaleza, em 14 de novembro de 1983. Formada em
Medicina pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com doutorado em
Neurociência Cognitiva / Psicologia pela Humboldt Universität zu Berlin, é
também escritora e artista plástica autodidata. Atualmente, divide-se entre
Psiquiatria, Literatura e Artes Plásticas. Reside em Fortaleza.
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