A crítica ao modelo biomédico sempre me
fascinou, e não por ser um profissional de saúde. Incitei-me à rebeldia epistemológica na arena acadêmica,
porém no gueto das ciências humanas. Por isso vislumbrava as promissoras
alianças interdisciplinares e a militância social a abrir as portas às doenças
tropicais e tirar os holofotes de ambulatórios e centros cirúrgicos. Doenças
raras proporcionalmente respaldadas enquanto doenças raras, e por isso não mais
importantes do que doenças prevalentes e com causas evitáveis de morte.
Na graduação em ciências sociais
fascinou-me o pensamento complexo de Edgar Morin e o paradigma sistêmico
em Frijof Capra que se reverberaram nas formações generalistas em saúde e nos paradigmas de promoção da saúde e
atenção primária, enfocando-se comunidades, famílias e estilos de vida. Destarte,
conferia-se um jogo investigativo às ciências sociais ao colocar a saúde numa condição de “barganha” do
homem com o outro, com o mundo e consigo mesmo.
Subjetividade e fenomenologia ganham
tônus problematizador à medida que a razão retorna ao tamanho merecido: inferir e suspender a
prioris, e nada mais! A razão não profetiza, não esteriliza, não dicotomiza… Razão não é substrato e
tampouco sinapses! A razão nos humaniza, mas sob auxílio da emoção. A razão controla, mas sob as licenças
poéticas das catarses.
E não me prolongarei nessas “frases-de-efeito”, que nem definem e nem
classificam, pois foi insistindo nessa metalinguagem que se expôs a
incompatibilidade do pensamento holístico e da subjetividade, estes ambientados
num discurso de livre-iniciativa neoliberal.
“Seja
um líder!”, “supere seus limites!”, “seja você mesmo e vá atrás do
seu lugar no mundo!”, “acredite e faça acontecer!”. Tantas exclamações quantas são as promessas... Essas
“frases-deefeito” encantam mais
do que explicam e, pior, faz-me acreditar realmente que serei um líder, romperei minhas limitações, encontrarei minha identidade,
ocuparei meu lugar no mundo e concretizarei meus propósitos… E então, entre
mantras contrabandeados do oriente e uma rala física quântica ecumênica, nasce
o poder mercadológico do coaching,
onde a questão não é se você está
sozinho ou infeliz, e sim que não 'merece' ficar sozinho e, tampouco, infeliz!
Cria-se uma versão antropomórfica da
física quântica, em substituição à física clássica; a ancestralidade é evocada
por condores, tigres e rios a esnobarem atributos junguianos de força, braveza,
persistência e etc.; o 'merecer
ser feliz' evoca o clássico discurso da
meritocracia neoliberal, ensimesmado na livre-iniciativa e livre-concorrência,
sendo o 'sucesso' o alcance das metas diante de prazo e esforço definidos. E
então o “normal” é ser um líder, ultrapassar seus limites, saber quem você é,
ocupar seu lugar no mundo e fazer acontecer! São estas as promessas mais apregoadas
em outdoors e retóricas de auditório.
Ao enaltecer o quantum enquanto partícula energética que suplanta a “lataria”
da matéria, o coaching forja-se
estrategicamente a partir da física quântica. Estrategicamente porque, sendo um campo epistemologicamente maleável e sob
reestruturações, os princípios da incerteza, a teoria da relatividade e teoria do caos soam tão
instigantes no ponto de vista científico quanto manipuláveis no ponto de vista
retórico/mercadológico. É reconhecido cientificamente os fenômenos da
mente/cérebro que derivam reações físicas a partir do “pensamento positivo”, do
“abraço” e da “palavra” sob férteis análises no campo da psiconeuroimunologia,
por exemplo. Porém o que se vê é um processo de individualização do ideal de
sucesso, superestimação do papel de liderança e materialização da felicidade
via 'plano de metas', sendo perceptível a pauta neoliberal a jogar pra
escanteio causas coletivas. Se uma só pessoa provoca a mudança na sua vida
mediante convicções, porque não se impactam muitos modos de vida cotidianos ao
se proclamar mentes em consonância de ideais, estes certamente altruístas e
mais sublimes do que o pontual desejo de um cidadão em se disciplinar para um
concurso público?!
Cascavilhar anseios individuais e dar-lhes
dimensões delirantes significa adentrar o cerne na vida social contemporânea ou, do contrário, miná-la? Além
disso, calar as dúvidas e angústias em favor de assépticos ideais de 'família', 'trabalho' e 'saúde'
o tornam produtos customizados mediante desejos individuais! A dinâmica
familiar de entes queridos não funcionará sob meus desígnios, e sim posso
aturar desgastes e atenuar conflitos; os solavancos do mercado especulativo não
estão em sintonia quântica com a planilha de metas do meu notebook; e tampouco
minha saúde será controlável quando ela é o produto final disso tudo...
A vida não mais imita a arte, e sim a
linguagem do mundo corporativo. Portanto essa conversão das conquistas
cotidianas sob ideias de 'metas', 'custo/benefício', 'nichos de mercado', 'networks' e 'liderança' põe em xeque o
próprio conceito de sanidade se o indagarmos à luz da liberdade, autenticidade e capacidade de se expor ao
sofrimento, à inconstância e à desrazão.
Pois, no padrão coaching, o “normal” é
resolver as agruras cotidianas como uma reunião corporativa de executivos,
pois há 'acionistas' (amigos e colegas) interessados em investirem na sua vida desde que sua 'empresa'
(família/corpo) tenha bom 'marketing' (emoções/comportamentos diários), e aí você se beneficia dos
'lucros' (felicidade e status).