sábado, 3 de setembro de 2016

Mas, afinal, o que é "ser brasileiro"?

Os últimos meses foram ricos em acontecimentos que levaram à multiplicação de gritos, considerações e reflexões sobre a “vergonha de ser brasileiro” e o “orgulho de ser brasileiro”. As duas interjeições, de alto teor emocional, convivem em redes sociais e artigos, em faixas nas ruas e acaloradas discussões entre familiares, amigos e desconhecidos, consequências diretas de eventos esportivos, políticos, econômicos e sociais que se acumularam em Terra Brasilis de uns tempos para cá.
Pergunto eu: se a identidade estivesse estritamente restrita ao local de nascimento e recebimento de carteira de identidade, porque sentir vergonha ou orgulho de um fato que, na verdade, você não gerou por esforços próprios? Claramente, entende-se que a identidade não se resume a um documento burocrático selado. O sentimento de pertencer ou não a uma determinada sociedade transpassa esta dimensão. Muitos estudos foram desenvolvidos a respeito e o assunto continua levantando mais perguntas do que respostas. A estrutura do mundo dito moderno em nações justapostas e independentes que atuam em ambiente competitivo, incentivou a criação de identidades nacionais que tenderam a se sobrepor à identidades individual, comunitária, local ou regional, se considerarmos estas como as mais tradicionais. Tudo indica que a globalização gerou um fenômeno paradoxal, longe ainda de ser entendido e assimilado. A abertura das nações umas às outras e consequente incremento de trocas entre elas provocou mudanças em hábitos, costumes e tradições, incentivando certa homogeneização dos estilos de vida a ponto da identidade nacional ser posta à prova. Ao mesmo tempo, aqueles mesmos fluxos de integração geraram contra reações diversas com iniciativas que estão levando à exacerbação de identidades nacional, regional, local, religiosa ou étnica, entre as principais, conforme pode-se testemunhar aqui e mundo afora. Nenhuma destas identidades está totalmente desconexa das outras. Temos portanto um quadro de grande complexidade para conseguir enxergar mais claramente as dinâmicas de convivência, influência e transformação destas múltiplas identidades, no tempo e no espaço.
Farei portanto mais uma pergunta: dado o caráter multidimensional complexo da identidade nacional, o que é então “ser brasileiro”? A pergunta lançada nos obriga a parar e tentar pesquisar algumas dimensões históricas, sociológicas e culturais costumeiramente ligadas ao conceito de identidade brasileira. Claro, não há pretensão científica nenhuma de minha parte nesta superficial e certamente parcial retrospectiva.
Festeja-se daqui a alguns dias o 194º ano de nascimento do Brasil enquanto nação independente. Iniciava-se naquele momento histórico um lento processo de construção, ainda em curso, o país e sua população inventando-se e reinventando-se periodicamente. Interessante notar que o marco do nascimento que ficou na mente coletiva brasileira foi um grito... Grito que costuma ser citado como um dos melhores meios de se conseguir qualquer coisa por aqui, ou até mesmo para ser ouvido, simplesmente.
O novo país passou por conturbados momentos logo depois de seu nascimento. Crise econômica e política profunda, guerra da Cisplatina, bancarrota do Banco do Brasil, tudo isso entre 1822 e 1828. Logo na sequência, abdicação de Pedro I e início do período de regência, ainda mais conturbado, com vários movimentos separatistas ameaçando a integridade do território. Tentativas de implantação de autonomia administrativa nos Estados da federação não surtiram os efeitos esperados. Foi com repressão violenta e posterior criação de polícias locais (os famosos “coronéis”) que o Brasil manteve sua dimensão territorial original. O preço a pagar, no entanto, foi caro. O país revelou-se servo dos interesses de uma elite europeizada, latifundiária e escravocrata que participaria ativamente da queda do Império em 1889 e dominaria a Primeira República, dita café com Leite.
Questões relativas à identidade brasileira começaram a ser levantadas, não por acaso, no final do período da regência, com a criação em 1838 do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro como primeira tentativa formal de pensar o Brasil enquanto unidade territorial coerente e homogênea. No final do século XIX, a literatura viria contribuir com suas poesias e proses sobre os costumes e tradições locais. Machado de Assis certamente encabeça a lista de autores marcantes na construção de uma identidade literária e social brasileira, mas José de Alencar não poderia deixar de ser citado. Ao incluir o mito indígeno e costumes regionais em suas obras, ajudou a gerar uma nova visão multifacetada do “ser brasileiro”. O modernismo dos anos 20 e sua famosa “Semana” constitui outro momento crucial. A arte brasileira desvinculou-se dos valores europeus e reivindicou suas próprias referências em um movimento claro de afirmação de identidade.
Ainda assim, costuma-se citar como primeiro grande movimento organizado de criação da identidade brasileira, várias políticas lançadas por Vargas nos anos 30, sob a denominação genérica de “brasilidade”. Trata-se portanto de construção recente. Surgem as primeiras considerações históricas e sociológicas em obras de autores como Gilberto Freyre (Casa Grande e Senzala, 1933) ou Sergio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil, 1936), que ecoam até os dias atuais. A partir da segunda guerra mundial, o Brasil desponta como assunto de conversa mundo afora, em parte devido à presença militar norte americana no território. Surgem os estereótipos samba, futebol e carnaval. Walt Disney inventa Zé carioca, o malandro, caricatural representante do dito jeitinho brasileiro. Carmem Miranda completa o quadro. Enfim, pode-se também citar o movimento tropicália que, em pleno regime militar, forjou uma nova dimensão emocional e até existencial do “ser brasileiro”. Até mesmo tele novelas que, ao retratar situações das mais diversas oferecem (ou impõem?) caminhos para entendimento do que seria a identidade brasileira em uma complexa teia de “sub-identidades” regionais, sociais, rurais e urbanas. O Brasil configura-se como mistura indígena, europeia, africana e asiática, em suas mais recentes ondas de imigração. Temos nesse país uma matriz múltipla, que, ao longo dos anos, adaptou-se, integrou-se em tradições regionais diversas num país de dimensão continental. Essa matriz populacional e cultural é única, carregada de simbolismo para o futuro de uma humanidade globalizada onde fronteiras e tradições tendem a fundir-se, independentemente das atuais resistências, e, consequentemente, reinventar-se.
Se há reconhecimento de regionalismos fortes na sociedade brasileira, o que então faz um(a) Amazonense e um(a) Catarinense sentirem-se pertencentes à mesma nação? Afinal, tudo que relatei até o momento diz respeito ao passado, às raízes, às ondas de construção de um sentimento de união identitária no país. Se olharmos o exemplo dos EUA, entende-se que o “ser norte americano” diz essencialmente respeito a um ideal, país das oportunidades, país da liberdade individual, do self made man. A dimensão futurista do ideal domina na definição da identidade nacional neste país. Outro exemplo, a França, cujas raízes são antigas e de fato, muito lembradas como elemento constituinte de sua identidade, tem trabalhado há bastante tempo a noção idealista republicana de liberdade, igualdade e fraternidade como novas dimensões que definiriam o que seria o “ser francês” nos dias atuais, em mais uma referência a uma visão futurista humana.
 Será a identidade brasileira uma mera colcha de retalhos histórica feita de tradições regionais, costumes importados e adaptados ou reinventados, estereótipos e gritos? O que faz um Brasileiro, do Oiapoque ao Chuí, sentir-se brasileiro, seja na vitória, seja na derrota, seja na saúde, seja na doença? Qual seria esse sonho, esse ideal que, se não todos, pelo menos a grande maioria, em seu íntimo, conseguiria compartilhar, uma vez despida de suas diversas máscaras identitárias assumidas no dia a dia da sociedade? Retomando os exemplos dos EUA ou da França, não é meu intuito aqui discutir se tais ideais são de fato plenamente vividos no seio destas sociedades. Afinal esses dois países são atualmente alvos de muitos comentários e até piadas sobre contra reações internas motivadas pelos fluxos globalizados que podem nos levar a acreditar que tais valores não passam de falácia. Estamos falando nesse momento em reconhecimento coletivo validado de valores almejados por uma sociedade, mesmo configurando-se, por enquanto, mais como ideal do que fato vivenciado conscientemente, que a diferencie de outras sociedades. Que valores, sejam eles claramente identificáveis em seu passado e perfil sociocultural, sejam eles conceitos idealísticos, a sociedade brasileira gostaria de praticar e divulgar perante o restante deste nosso mundo globalizado? Qual seria o “ser brasileiro” do século XXI?

Philippe H. Gidon

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