Os últimos meses foram ricos em acontecimentos que levaram à multiplicação de
gritos, considerações e reflexões sobre a “vergonha de ser brasileiro” e o
“orgulho de ser brasileiro”. As duas interjeições, de alto teor emocional,
convivem em redes sociais e artigos, em faixas nas ruas e acaloradas discussões
entre familiares, amigos e desconhecidos, consequências diretas de eventos
esportivos, polÃticos, econômicos e sociais que se acumularam em Terra Brasilis
de uns tempos para cá.
Pergunto
eu: se a identidade estivesse estritamente restrita ao local de nascimento e
recebimento de carteira de identidade, porque sentir vergonha ou orgulho de um
fato que, na verdade, você não gerou por esforços próprios? Claramente,
entende-se que a identidade não se resume a um documento burocrático selado. O
sentimento de pertencer ou não a uma determinada sociedade transpassa esta
dimensão. Muitos estudos foram desenvolvidos a respeito e o assunto continua
levantando mais perguntas do que respostas. A estrutura do mundo dito moderno
em nações justapostas e independentes que atuam em ambiente competitivo,
incentivou a criação de identidades nacionais que tenderam a se sobrepor à identidades
individual, comunitária, local ou regional, se considerarmos estas como as mais
tradicionais. Tudo indica que a globalização gerou um fenômeno paradoxal, longe
ainda de ser entendido e assimilado. A abertura das nações umas às outras e
consequente incremento de trocas entre elas provocou mudanças em hábitos,
costumes e tradições, incentivando certa homogeneização dos estilos de vida a
ponto da identidade nacional ser posta à prova. Ao mesmo tempo, aqueles mesmos
fluxos de integração geraram contra reações diversas com iniciativas que estão
levando à exacerbação de identidades nacional, regional, local, religiosa ou
étnica, entre as principais, conforme pode-se testemunhar aqui e mundo afora.
Nenhuma destas identidades está totalmente desconexa das outras. Temos portanto
um quadro de grande complexidade para conseguir enxergar mais claramente as
dinâmicas de convivência, influência e transformação destas múltiplas
identidades, no tempo e no espaço.
Farei
portanto mais uma pergunta: dado o caráter multidimensional complexo da
identidade nacional, o que é então “ser brasileiro”? A pergunta lançada nos
obriga a parar e tentar pesquisar algumas dimensões históricas, sociológicas e
culturais costumeiramente ligadas ao conceito de identidade brasileira. Claro,
não há pretensão cientÃfica nenhuma de minha parte nesta superficial e
certamente parcial retrospectiva.
Festeja-se
daqui a alguns dias o 194º ano de nascimento do Brasil enquanto nação
independente. Iniciava-se naquele momento histórico um lento processo de
construção, ainda em curso, o paÃs e sua população inventando-se e
reinventando-se periodicamente. Interessante notar que o marco do nascimento
que ficou na mente coletiva brasileira foi um grito... Grito que costuma ser
citado como um dos melhores meios de se conseguir qualquer coisa por aqui, ou
até mesmo para ser ouvido, simplesmente.
O
novo paÃs passou por conturbados momentos logo depois de seu nascimento. Crise
econômica e polÃtica profunda, guerra da Cisplatina, bancarrota do Banco do
Brasil, tudo isso entre 1822 e 1828. Logo na sequência, abdicação de Pedro I e
inÃcio do perÃodo de regência, ainda mais conturbado, com vários movimentos
separatistas ameaçando a integridade do território. Tentativas de implantação
de autonomia administrativa nos Estados da federação não surtiram os efeitos
esperados. Foi com repressão violenta e posterior criação de polÃcias locais
(os famosos “coronéis”) que o Brasil manteve sua dimensão territorial original.
O preço a pagar, no entanto, foi caro. O paÃs revelou-se servo dos interesses
de uma elite europeizada, latifundiária e escravocrata que participaria
ativamente da queda do Império em 1889 e dominaria a Primeira República, dita
café com Leite.
Questões
relativas à identidade brasileira começaram a ser levantadas, não por acaso, no
final do perÃodo da regência, com a criação em 1838 do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro como primeira tentativa formal de pensar o Brasil
enquanto unidade territorial coerente e homogênea. No final do século XIX, a
literatura viria contribuir com suas poesias e proses sobre os costumes e
tradições locais. Machado de Assis certamente encabeça a lista de autores
marcantes na construção de uma identidade literária e social brasileira, mas
José de Alencar não poderia deixar de ser citado. Ao incluir o mito indÃgeno e
costumes regionais em suas obras, ajudou a gerar uma nova visão multifacetada
do “ser brasileiro”. O modernismo dos anos 20 e sua famosa “Semana” constitui
outro momento crucial. A arte brasileira desvinculou-se dos valores europeus e
reivindicou suas próprias referências em um movimento claro de afirmação de
identidade.
Ainda
assim, costuma-se citar como primeiro grande movimento organizado de criação da
identidade brasileira, várias polÃticas lançadas por Vargas nos anos 30, sob a
denominação genérica de “brasilidade”. Trata-se portanto de construção recente.
Surgem as primeiras considerações históricas e sociológicas em obras de autores
como Gilberto Freyre (Casa Grande e Senzala, 1933) ou Sergio Buarque de Holanda
(RaÃzes do Brasil, 1936), que ecoam até os dias atuais. A partir da segunda
guerra mundial, o Brasil desponta como assunto de conversa mundo afora, em
parte devido à presença militar norte americana no território. Surgem os
estereótipos samba, futebol e carnaval. Walt Disney inventa Zé carioca, o
malandro, caricatural representante do dito jeitinho brasileiro. Carmem Miranda
completa o quadro. Enfim, pode-se também citar o movimento tropicália que, em
pleno regime militar, forjou uma nova dimensão emocional e até existencial do
“ser brasileiro”. Até mesmo tele novelas que, ao retratar situações das mais
diversas oferecem (ou impõem?) caminhos para entendimento do que seria a
identidade brasileira em uma complexa teia de “sub-identidades” regionais,
sociais, rurais e urbanas. O Brasil configura-se como mistura indÃgena,
europeia, africana e asiática, em suas mais recentes ondas de imigração. Temos
nesse paÃs uma matriz múltipla, que, ao longo dos anos, adaptou-se, integrou-se
em tradições regionais diversas num paÃs de dimensão continental. Essa matriz
populacional e cultural é única, carregada de simbolismo para o futuro de uma
humanidade globalizada onde fronteiras e tradições tendem a fundir-se,
independentemente das atuais resistências, e, consequentemente, reinventar-se.
Se
há reconhecimento de regionalismos fortes na sociedade brasileira, o que então
faz um(a) Amazonense e um(a) Catarinense sentirem-se pertencentes à mesma
nação? Afinal, tudo que relatei até o momento diz respeito ao passado, à s
raÃzes, à s ondas de construção de um sentimento de união identitária no paÃs.
Se olharmos o exemplo dos EUA, entende-se que o “ser norte americano” diz
essencialmente respeito a um ideal, paÃs das oportunidades, paÃs da liberdade
individual, do self made man. A dimensão futurista do ideal domina
na definição da identidade nacional neste paÃs. Outro exemplo, a França, cujas
raÃzes são antigas e de fato, muito lembradas como elemento constituinte de sua
identidade, tem trabalhado há bastante tempo a noção idealista republicana de
liberdade, igualdade e fraternidade como novas dimensões que definiriam o que
seria o “ser francês” nos dias atuais, em mais uma referência a uma visão
futurista humana.
Será
a identidade brasileira uma mera colcha de retalhos histórica feita de
tradições regionais, costumes importados e adaptados ou reinventados,
estereótipos e gritos? O que faz um Brasileiro, do Oiapoque ao ChuÃ, sentir-se
brasileiro, seja na vitória, seja na derrota, seja na saúde, seja na doença?
Qual seria esse sonho, esse ideal que, se não todos, pelo menos a grande
maioria, em seu Ãntimo, conseguiria compartilhar, uma vez despida de suas
diversas máscaras identitárias assumidas no dia a dia da sociedade? Retomando
os exemplos dos EUA ou da França, não é meu intuito aqui discutir se tais
ideais são de fato plenamente vividos no seio destas sociedades. Afinal esses
dois paÃses são atualmente alvos de muitos comentários e até piadas sobre
contra reações internas motivadas pelos fluxos globalizados que podem nos levar
a acreditar que tais valores não passam de falácia. Estamos falando nesse
momento em reconhecimento coletivo validado de valores almejados por uma
sociedade, mesmo configurando-se, por enquanto, mais como ideal do que fato
vivenciado conscientemente, que a diferencie de outras sociedades. Que valores,
sejam eles claramente identificáveis em seu passado e perfil sociocultural,
sejam eles conceitos idealÃsticos, a sociedade brasileira gostaria de praticar
e divulgar perante o restante deste nosso mundo globalizado? Qual seria o “ser brasileiro” do
século XXI?
Philippe
H. Gidon
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