domingo, 25 de setembro de 2016

Em vidas com metas e prazos, o desejo não se dociliza em planilhas...

A crítica ao modelo biomédico sempre me fascinou, e não por ser um profissional de saúde. Incitei-me à rebeldia epistemológica na arena acadêmica, porém no gueto das ciências humanas. Por isso vislumbrava as promissoras alianças interdisciplinares e a militância social a abrir as portas às doenças tropicais e tirar os holofotes de ambulatórios e centros cirúrgicos. Doenças raras proporcionalmente respaldadas enquanto doenças raras, e por isso não mais importantes do que doenças prevalentes e com causas evitáveis de morte.

Na graduação em ciências sociais fascinou-me o pensamento complexo de Edgar Morin e o paradigma sistêmico em Frijof Capra que se reverberaram nas formações generalistas em saúde e nos paradigmas de promoção da saúde e atenção primária, enfocando-se comunidades, famílias e estilos de vida. Destarte, conferia-se um jogo investigativo às ciências sociais ao colocar a saúde numa condição de “barganha” do homem com o outro, com o mundo e consigo mesmo.

Subjetividade e fenomenologia ganham tônus problematizador à medida que a razão retorna ao tamanho merecido: inferir e suspender a prioris, e nada mais! A razão não profetiza, não esteriliza, não dicotomiza… Razão não é substrato e tampouco sinapses! A razão nos humaniza, mas sob auxílio da emoção. A razão controla, mas sob as licenças poéticas das catarses.

E não me prolongarei nessas “frases-de-efeito”, que nem definem e nem classificam, pois foi insistindo nessa metalinguagem que se expôs a incompatibilidade do pensamento holístico e da subjetividade, estes ambientados num discurso de livre-iniciativa neoliberal.

Seja um líder!”, “supere seus limites!”, “seja você mesmo e vá atrás do seu lugar no mundo!”, acredite e faça acontecer!”. Tantas exclamações quantas são as promessas... Essas “frases-deefeito” encantam mais do que explicam e, pior, faz-me acreditar realmente que serei um líder, romperei minhas limitações, encontrarei minha identidade, ocuparei meu lugar no mundo e concretizarei meus propósitos… E então, entre mantras contrabandeados do oriente e uma rala física quântica ecumênica, nasce o poder mercadológico do coaching, onde a questão não é se você está sozinho ou infeliz, e sim que não 'merece' ficar sozinho e, tampouco, infeliz!

Cria-se uma versão antropomórfica da física quântica, em substituição à física clássica; a ancestralidade é evocada por condores, tigres e rios a esnobarem atributos junguianos de força, braveza, persistência e etc.; o 'merecer ser feliz' evoca o clássico discurso da meritocracia neoliberal, ensimesmado na livre-iniciativa e livre-concorrência, sendo o 'sucesso' o alcance das metas diante de prazo e esforço definidos. E então o “normal” é ser um líder, ultrapassar seus limites, saber quem você é, ocupar seu lugar no mundo e fazer acontecer! São estas as promessas mais apregoadas em outdoors e retóricas de auditório.

Ao enaltecer o quantum enquanto partícula energética que suplanta a “lataria” da matéria, o coaching forja-se estrategicamente a partir da física quântica. Estrategicamente porque, sendo um campo epistemologicamente maleável e sob reestruturações, os princípios da incerteza, a teoria da relatividade e teoria do caos soam tão instigantes no ponto de vista científico quanto manipuláveis no ponto de vista retórico/mercadológico. É reconhecido cientificamente os fenômenos da mente/cérebro que derivam reações físicas a partir do “pensamento positivo”, do “abraço” e da “palavra” sob férteis análises no campo da psiconeuroimunologia, por exemplo. Porém o que se vê é um processo de individualização do ideal de sucesso, superestimação do papel de liderança e materialização da felicidade via 'plano de metas', sendo perceptível a pauta neoliberal a jogar pra escanteio causas coletivas. Se uma só pessoa provoca a mudança na sua vida mediante convicções, porque não se impactam muitos modos de vida cotidianos ao se proclamar mentes em consonância de ideais, estes certamente altruístas e mais sublimes do que o pontual desejo de um cidadão em se disciplinar para um concurso público?!

Cascavilhar anseios individuais e dar-lhes dimensões delirantes significa adentrar o cerne na vida social contemporânea ou, do contrário, miná-la? Além disso, calar as dúvidas e angústias em favor de assépticos ideais de 'família', 'trabalho' e 'saúde' o tornam produtos customizados mediante desejos individuais! A dinâmica familiar de entes queridos não funcionará sob meus desígnios, e sim posso aturar desgastes e atenuar conflitos; os solavancos do mercado especulativo não estão em sintonia quântica com a planilha de metas do meu notebook; e tampouco minha saúde será controlável quando ela é o produto final disso tudo...

A vida não mais imita a arte, e sim a linguagem do mundo corporativo. Portanto essa conversão das conquistas cotidianas sob ideias de 'metas', 'custo/benefício', 'nichos de mercado', 'networks' e 'liderança' põe em xeque o próprio conceito de sanidade se o indagarmos à luz da liberdade, autenticidade e capacidade de se expor ao sofrimento, à inconstância e à desrazão.


Pois, no padrão coaching, o “normal” é resolver as agruras cotidianas como uma reunião corporativa de executivos, pois há 'acionistas' (amigos e colegas) interessados em investirem na sua vida desde que sua 'empresa' (família/corpo) tenha bom 'marketing' (emoções/comportamentos diários), e aí você se beneficia dos 'lucros' (felicidade e status).

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