Pensar o Brasil ou a sociedade
brasileira caracteriza-se como um desafio complexo e em alguns momentos
perigoso, algo comparado a colocar uma das mãos em uma colmeia, atrapalhando o
repouso em berço esplêndido da abelha-rainha que, enfurecida pelo desrespeitoso
ataque, irá responder com dolorosas ferroadas no subversivo invasor que
resolveu atrapalhar a ordem social preestabelecida. No Brasil, a nossa colmeia,
encontramos uma semelhante norma social em vigor, onde há uma determinação
precisa e, geralmente imutável, da posição e função que cada abelhinha (brasileiro)
apresenta nessa sociedade. Compreender esse arranjo coletivo é um dos caminhos
que devemos trilhar para nos descobrirmos como brasileiros e nação.
Em
Casa Grande e Senzala, livro publicado em 1933 pelo sociólogo brasileiro
Gilberto Freyre, que aborda o patriarcalismo tropical e a gênese da sociedade
brasileira, encontramos alguns acessos interessantes para compreendermos a dinâmica sociocultural brasileira. Um deles é
a formação do mito brasileiro, onde temos a exaltação do “mulato brasileiro” como
fruto da miscigenação cultural dos brancos, principalmente portugueses, dos
negros das várias nações africanas e dos diferentes indígenas que habitavam o
Brasil. E é exatamente essa mescla que permitiu, segundo Freyre, o surgimento
de uma sociedade com valores culturais ricos e diversos. Os conceitos
apresentados em Casa Grande e Senzala refutam a visão à época de que os
brasileiros seriam uma “raça” menor, originada pela miscigenação, um povo
incapaz e inferior às “virtudes e qualidades” europeias. Essa ideia de
submissão é retratada através da expressão "complexo de vira-lata",
criada pelo dramaturgo e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, originalmente
referindo-se ao abalo emocional sofrido pelos brasileiros com a derrota para a
seleção uruguaia na final da Copa do Mundo de Futebol em 1950.
Por infelicidade, sabemos que ainda
hoje esses sentimentos de subalternidade e conformidade, não apenas estão
vivos, como também são estimulados na sociedade brasileira. Qual seria a razão
dessa lamentável condição? De maneira certa, apenas uma análise profunda da
história social brasileira, realizada por “experts” no tema, talvez respondesse
a essa questão, o que não é o meu caso. Porém, arrisco-me a especular que uma
das razões seja o fato de que nosso país foi estruturado tendo como base uma
sociedade escravocrata, que existiu no Brasil de 1530 até 1888, mas que ainda
influencia sobremaneira a sociedade atual, ditando os nossos valores, conceitos
e prejuízos que, em muitos momentos, transformam-se em preconceitos.
Essa realidade veio à tona nos últimos
anos, quando observamos avanços sociais
que permitiram brasileiros com menor poder aquisitivo frequentarem cursos de
nível superior, principalmente privado (a maioria com qualidade contestável), comprarem
eletrodomésticos e viajarem de avião para suas férias, em alguns casos, até
para o exterior. Mudanças como essas, incomodaram e incomodam a nossa
abelha-rainha, que não aceita dividir os privilégios da sua casta com
abelhinhas operárias, afinal de contas, para a Apis mellifera mais simples, só é permitido atender às necessidades
da rainha, provendo-lhe uma alimentação exclusiva, através da geleia real, e
não sentar-se à mesa em paridade.
No Brasil, encontramos uma casta muito
bem definida e estabelecida, que se vem propagando desde as capitanias
hereditárias, um grupo político e econômico que detêm a maior parte da riqueza
nacional, enquanto em muitos rincões do país, temos uma grande e crescente
massa de miseráveis. Há inúmeras passagens na história do país que representam
bem a nossa realidade. Pouco após o golpe militar, que derrubou o Império em
1889, o então Capitão Felicíssimo do Espírito Santo Cardoso, residente em Goiás
e bisavô do ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso, escreve ao filho alferes Joaquim Inácio Batista Cardoso,
ironizando a jovem república que o filho ajudou a fundar. “Vocês fizeram a
república que não serviu para nada. Aqui agora, como antes, continuam mandando
os Caiado”. Outra emblemática passagem vem do livro Esaú e Jacó, escrito por Machado
de Assis, em que o personagem Custódio, dono de uma confeitaria, mandou que se
fizesse uma placa com o nome do estabelecimento “Confeitaria do Império”.
Ocorre que a tabuleta foi pintada no dia do “Baile da Ilha Fiscal”, o último
suspiro do Brasil monárquico. Para Custódio, seria perigoso manter o nome
antigo. Após refletir entre “Confeitaria da República” ou “Confeitaria do
Catete”, optou por algo mais simples. Por sugestão do Conselheiro Ayres,
decidiu-se por uma terceira opção, em nada comprometedora, a padaria
chamar-se-ia Confeitaria do Governo... “Depois lembrou a índole branda do povo.
O povo mudaria de governo, sem tocar nas pessoas.” — Machado de Assis, no livro “Esaú e Jacó”.
A história do Brasil, foi marcada por
inúmeras “mudanças de placas” orquestradas pelo mesmo grupo, enquanto ao povo
coube a marginalidade do processo. Mas qual a motivo de tamanha apatia?
Provavelmente a razão seja a maneira como o brasileiro vê o brasileiro. Somos
uma sociedade na qual a noção de respeito ao próximo só faz sentido quando o
próximo é o seu próprio reflexo no espelho. Uma sociedade, onde o cidadão que
critica condutas desonestas e corruptas dos políticos em Brasília é incapaz de
respeitar normas básicas e princípios éticos no seu dia a dia. Muitos brasileiros
não têm consideração por pessoas que não participam do seu círculo social,
colocando seus interesses, mimos e vontades acima de todos. Nossa sociedade é
machista, conservadora, racista, preconceituosa e elitista. Vivemos em um país
onde a conta bancaria, influência social ou o fato de ser oriundo de cursos
tradicionais como direito ou medicina, dão ao sujeito o direito de ser chamado
de doutor, como forma de demonstrar sua casta superior. Somos a nação do
“jeitinho brasileiro”, que descumpre as leis, destrói o meio ambiente, não
respeita os idosos, mulheres e crianças. Somos a nação de altos impostos e
baixíssima qualidade dos serviços públicos. Possuímos uma elite obtusa,
alienada e demente, que acredita, entre outros absurdos, que a melhor forma de
resolver questões associadas a violência urbana, é aumentar o número de
policiais, em sua grande maioria corruptos e mal preparados, que comporta-se em
relação à negros e pobres, tal qual o capitão do mato fazia com o “nego
fugido”. Educar o povo, dando condições dignas de trabalho, educação e saúde,
seria, na visão dessa elite, financiar o fortalecimento do “inimigo”, que irá,
no futuro, buscando igualdade social, contestar os privilégios de pequenos
grupos.
Se a relação do brasileiro com o
próprio brasileiro é algo mesquinho, a nossa relação com os nossos políticos
não é diferente. Criticamos, todos os dias, o excesso de corrupção, desgoverno
e o anseio dos nossos políticos em atender apenas a interesses pessoais ou
partidários. Apesar de parecer contraditório, pois vemos no dia a dias dos
cidadãos comuns exemplos das mesmas ações que criticamos, temos em relação aos
nossos políticos, uma relação de distância e desprezo. Não conseguimos enxergar
que a existência de pessoas em cargos públicos que se sentem no direito de
apenas buscar o favorecimento próprio, e não servir ao país, é um reflexo
direto do que encontramos na nossa sociedade.
Atualmente, o Brasil passa por um
momento de grande instabilidade política, somada a uma enorme debilidade
econômica. Há algumas décadas, tivemos uma ditadura militar, um período nefasto
que deixou marcas profundas na nossa sociedade. Nossa democracia ainda é frágil
e o brasileiro não entendeu a importância que possui no jogo democrático.
Experimentamos recentemente um governo de esquerda
“fake”, que se utilizou do argumento de mudanças sociais para realizar uma
enorme pilhagem nos cofres públicos. Esse mesmo governo foi derrubado por um
golpe político, liderado por grupos da velha e podre política brasileira,
ansiosos por voltarem a dar as cartas.
Vimos mais uma vez que o bom e velho Machado de Assis estava certíssimo
ao afirmar já no século XIX, que se
mudam os governos, mas os governantes e governados, jamais. Apesar das críticas
que expus aqui, considero-me um homem otimista em relação ao meu país. Sei que
o Brasil dos meus sonhos não será visto ou apreciado por mim. Nosso processo de
mudança é lento e gradativo. Mas acredito em tempos melhores, e essas mudança
virão dos governados e não dos governantes. Hoje vivemos em um mundo onde há
mais informação para as pessoas, o que não significa mais conhecimento. Porém,
vejo que estamos começando a entender o papel que temos em um país democrático.
Estamos começando a entender, de forma lenta, eu reconheço, que a forma correta
de pensar deve ir além do eu e da minha família, deve abranger o nós como
nação. O que mais desejo hoje é que as próximas gerações façam, cada vez mais,
altos e fortes zunidos para não deixarmos a nossa abelha-rainha repousar no seu
eterno e confortável berço esplêndido.
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