sábado, 27 de fevereiro de 2016

Não nos deixemos seduzir por nossas certezas!












A loucura existe para além dos transtornos mentais catalogados, ainda que os catálogos – assim os chamo com a liberdade que a prosa me confere - mais e mais nos contemplem. A insanidade reside no extremo espectro da certeza, logo depois de uma tênue fronteira que, descuidou, ultrapassamos. Estou cada vez mais certa – alarme para o meu desvario acionado -  de que a loucura paira no absolutismo das certezas. Não estar totalmente convicto já me pareceu inexperiência ou mesmo fraqueza de gênio. Hoje vejo a sadia consideração de que talvez estejamos equivocados como a válvula que nos resguarda do desatino. Se estamos assim tão seguramente corretos, não há o que discutir. É mera questão de impor ao outro o que tão claramente enxergamos. Da certeza de que nossa forma de pensar e agir é absoluta brota a intolerância. O fanatismo é uma espécie de alienação prima-irmã em cunho, mas distinta em alcance, do delírio, crença irremovível tão característica da psicose. O delírio pode externar-se de modo agressivo, bizarro, porém, nas mais das vezes, restringe-se a um universo particular. Já a loucura corrente e expansiva da qual não tratam os psiquiatras revela-se em beligerantes ataques físicos, químicos ou mesmo verbais. A insânia eclode aos 100% de certeza. Sem que nos apercebamos, relativizamos as regras sociais que se nos aplicam em nome de passionais convicções. Felizmente, nem tudo está perdido! Se não dispomos de uma capacidade indistinta de amor, salva-nos uma bendita porção de incerteza, mãe da prudência e da tolerância. De modo complementar, onde o amor e o respeito naturalmente emergem, abre-se espaço para que, mesmo divergindo do que o outro defende, pare-se, pondere-se. O que um ser tão reconhecidamente pensante vê de sentido nisso? Quem se permite o pequeno recuo pode surpreender-se ao constatar que, a despeito de toda aparente diferença, o que se quer é rigorosamente o mesmo. E se deixarmos as bandeiras de lado e passarmos ao que interessa? Como é que se chega à sociedade que almejamos? Matutemos, despretensiosa e respeitosamente, esta e outras ideias. Não nos deixemos seduzir por nossas certezas!

11 comentários :

  1. Matutar, matutar mais ainda... e um pouco mais matutar. Essa é a questão (solução). Saudades de vcs, Lia. Abs.

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  2. Bertrand Russel, um filósofo inglês que estudou a lógica, certa vez disse que jamais apostaria sua vida por uma opinião sua, pois poderia estar errado. Fantástico seu texto. Eu poderia ser mais polêmico e dizer que as convicções às vezes podem ser apenas falta de cognição. Mas adorei a teoria de excesso de certeza ser apenas loucura. 👏👏

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    1. O texto saiu anônimo, mas enriqueceu a discussão. Muito obrigada!

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  3. Riqueza de reflexão. beleza de texto!
    Onde estão os critérios para se estabelecerem limites entre a sanidade e a normalidade?
    São temas que não se limitam à medicina, pois atingem o campo da filosofia e da
    literatura.
    Vejam-se o elogio da loucura de Erasmo e os textos do El ingenioso hidalgo Don Quijote
    de la Mancha, que acentuam nesta mesma linha a dualidade da verdade, a ilusão das aparências, a sutil divisória entre a certeza e a ignorância, a convivência harmoniosa entre o racionalismo utilitário e o idealismo ingênuo.

    Se a ciência fixa da Física trouxe recentemente novos paradigmas para explicar o nascimento, a vida e a morte do universo com a detectação das ondas gravitacionais que viajaram pelo espaço por mais de um bilhão de anos, mais razões temos nós de desconfiarmos de nossas certezas e sermos menos presunçosos e mais tolerantes ao anunciarmos as nossas verdades.

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    1. Rapaz, tem comentário que é melhor que o próprio texto... Obrigada, Myrson!

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  4. Muito bom; lembrando que uma das caracteristicas fundadoras do delirio eh a certeza!

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  5. Boa lembrança, Erick. E delirar nem é assim tão difícil...

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