A loucura
existe para além dos transtornos mentais catalogados, ainda que os catálogos –
assim os chamo com a liberdade que a prosa me confere - mais e mais nos
contemplem. A insanidade reside no extremo espectro da certeza, logo depois de
uma tênue fronteira que, descuidou, ultrapassamos. Estou cada vez mais certa –
alarme para o meu desvario acionado - de que a loucura paira no
absolutismo das certezas. Não estar totalmente convicto já me pareceu
inexperiência ou mesmo fraqueza de gênio. Hoje vejo a sadia consideração de que
talvez estejamos equivocados como a válvula que nos resguarda do desatino. Se
estamos assim tão seguramente corretos, não há o que discutir. É mera questão
de impor ao outro o que tão claramente enxergamos. Da certeza de que nossa
forma de pensar e agir é absoluta brota a intolerância. O fanatismo é uma
espécie de alienação prima-irmã em cunho, mas distinta em alcance, do delírio,
crença irremovível tão característica da psicose. O delírio pode externar-se de
modo agressivo, bizarro, porém, nas mais das vezes, restringe-se a um universo
particular. Já a loucura corrente e expansiva da qual não tratam os psiquiatras
revela-se em beligerantes ataques físicos, químicos ou mesmo verbais. A
insânia eclode aos 100% de certeza. Sem que nos apercebamos,
relativizamos as regras sociais que se nos aplicam em nome de passionais
convicções. Felizmente, nem tudo está perdido! Se não dispomos de uma
capacidade indistinta de amor, salva-nos uma bendita porção de incerteza, mãe
da prudência e da tolerância. De modo complementar, onde o amor e o respeito
naturalmente emergem, abre-se espaço para que, mesmo divergindo do que o outro
defende, pare-se, pondere-se. O que um ser tão reconhecidamente pensante vê de
sentido nisso? Quem se permite o pequeno recuo pode surpreender-se ao constatar
que, a despeito de toda aparente diferença, o que se quer é rigorosamente o
mesmo. E se deixarmos as bandeiras de lado e passarmos ao que interessa? Como é
que se chega à sociedade que almejamos? Matutemos, despretensiosa e respeitosamente,
esta e outras ideias. Não nos deixemos seduzir por nossas certezas!
Cidadãos de correntes e opiniões distintas pensam a sociedade brasileira por escrito.
sábado, 27 de fevereiro de 2016
Não nos deixemos seduzir por nossas certezas!
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Lia Sanders
Formada em Medicina pela Universidade Federal do Ceará, com doutorado em Psicologia/Neurociência Cognitiva pela Humboldt Universität zu Berlin, Lia Sanders divide-se entre Psiquiatria, Literatura e Artes Plásticas. É autora do romance "Todo mundo tem direito a um segredo" (editora Substânsia, 2015).
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Matutar, matutar mais ainda... e um pouco mais matutar. Essa é a questão (solução). Saudades de vcs, Lia. Abs.
ResponderExcluirMatutemos, tio! ;-)
ExcluirBertrand Russel, um filósofo inglês que estudou a lógica, certa vez disse que jamais apostaria sua vida por uma opinião sua, pois poderia estar errado. Fantástico seu texto. Eu poderia ser mais polêmico e dizer que as convicções às vezes podem ser apenas falta de cognição. Mas adorei a teoria de excesso de certeza ser apenas loucura. 👏👏
ResponderExcluirO texto saiu anônimo, mas enriqueceu a discussão. Muito obrigada!
ExcluirRiqueza de reflexão. beleza de texto!
ResponderExcluirOnde estão os critérios para se estabelecerem limites entre a sanidade e a normalidade?
São temas que não se limitam à medicina, pois atingem o campo da filosofia e da
literatura.
Vejam-se o elogio da loucura de Erasmo e os textos do El ingenioso hidalgo Don Quijote
de la Mancha, que acentuam nesta mesma linha a dualidade da verdade, a ilusão das aparências, a sutil divisória entre a certeza e a ignorância, a convivência harmoniosa entre o racionalismo utilitário e o idealismo ingênuo.
Se a ciência fixa da Física trouxe recentemente novos paradigmas para explicar o nascimento, a vida e a morte do universo com a detectação das ondas gravitacionais que viajaram pelo espaço por mais de um bilhão de anos, mais razões temos nós de desconfiarmos de nossas certezas e sermos menos presunçosos e mais tolerantes ao anunciarmos as nossas verdades.
Excelente ponderação!
ExcluirRapaz, tem comentário que é melhor que o próprio texto... Obrigada, Myrson!
ExcluirMuito bom!
ResponderExcluirObrigada, Adriana! ;-)
ResponderExcluirMuito bom; lembrando que uma das caracteristicas fundadoras do delirio eh a certeza!
ResponderExcluirBoa lembrança, Erick. E delirar nem é assim tão difícil...
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