Ao longo de toda a vida, constantemente
nos são designados – e também escolhemos – diversos papéis e atribuições, e nos encaixamos em diferentes categorias. Filhos,
estudantes, colegas, torcedores de um time esportivo, profissionais, cônjuges,
vizinhos, filiados a um partido político, pais, amigos, aposentados, seguidores
de uma religião ou de uma corrente filosófica, fãs, ídolos, e por aí vai.
Alguns desses papéis são permanentes, outros mudam de vez em quando, e ainda
existem os que são trocados a todo instante. Gostamos e temos necessidade de
categorizar as coisas e as pessoas conforme suas características, seja para
unir ou para separar.
Às vezes estamos tão acostumados a pensar de
determinada maneira que temos dificuldade em imaginar como seria estar em outra
pele, em reconhecer as opiniões alheias. A alteridade pode parecer demasiado
estranha, até perigosa. Com frequência ficamos engessados numa perspectiva
qualquer.
Uma parábola indiana relativamente famosa,
com várias versões semelhantes, fala de um grupo de cegos que entram em contato
com um elefante pela primeira vez, sendo que cada pessoa toca apenas em uma
parte do animal, comparando suas impressões uns com os outros depois. Assim, o
sujeito que pega na tromba do elefante diz que o bicho parece uma cobra; o que
toca na perna garante que está diante de um pilar; e o que alcança a orelha
comenta que o animal se trata de algo como um grande leque. Não há consenso
entre eles, e mal sabem que sua compreensão é incompleta. Embora cada um
perceba uma característica verdadeira do paquiderme, nenhum consegue abarcar o
todo. Pode-se, então, inferir que não se deve julgar um objeto, pessoa ou
situação apenas com base em partes e fragmentos, e que algumas verdades são
bastante relativas.
Outra curiosidade vinda do oriente
encontra-se no modo como a língua hebraica trata a perspectiva do passado e do
futuro. Enquanto nas culturas ocidentais geralmente se considera que o passado
está atrás de nós e o futuro vem vindo à nossa frente, no hebraico a palavra
correspondente a “passado” também significa “à frente” (ou seja, pode-se
contemplar o que passou), e o termo correspondente a “futuro” também pode
significar “atrás” (pois não se consegue ver, é desconhecido). Esse olhar
diferente nos convida a prestar bastante atenção à nossa história.
Deixando um pouco as elucubrações sobre
espaços e tempos, passemos a abordar mais diretamente o fértil campo das
relações humanas. É interessante como, por vezes, a mudança de
perspectiva, ao invés de favorecer alterações de comportamento, perpetua
situações cíclicas perniciosas. Temos notícias de escravos que, após libertos,
tornaram-se senhores escravagistas; indivíduos pobres que, depois de
enriquecerem, passaram a humilhar outros sadicamente; cidadãos comuns que, uma
vez revestidos de autoridade, começaram a cometer abusos de poder. Muitos dos
que alcançam posições mais cômodas parecem esquecer que já foram sofredores
(ou, quem sabe, justamente por lembrarem até demais, sem a devida elaboração, é
que se tornam agentes de mazelas, fazendo jus àquela brincadeira do “desconta
lá”). É de admirar a postura do condutor de automóvel que frequentemente
reclama dos pedestres, porém, quando ele mesmo está transitando a pé, enche a
boca para amaldiçoar os motoristas.
Nesta época de nervos à flor da pele, há quem se
aferre demais a uma parte do elefante e há quem nem suporte tocá-lo. Parece
bastante difícil exercitar a tolerância com outras perspectivas, mesmo quando o
outro nos tem muito a ensinar. Como dizia o padre Antônio Vieira, “o verdadeiro
saber é de saber reconhecer a verdade, ainda que seja filha de outros olhos ou
de outro entendimento, e não se cegar com o próprio”.
A verdade é o que se deve buscar e a tolerância é o que devemos exercitar. Na parábola do elefante, é importante lembrar, trata-se de um elefante. Devemos ser tolerantes, pois sempre há a possibilidade de estarmos nós mesmo errados, mas o elefante continuará sendo um elefante, mesmo que alguém ache ser uma cobra. Parabéns pelo seu texto!!
ResponderExcluirObrigado, Márcio. Seu comentário é bastante pertinente. Devemos buscar (e reconhecer, seguindo o conselho de Antônio Vieira) a verdade como ela é (metaforicamente, o elefante, o "ser completo"). Um grande problema desponta justamente quando se pretende ter, a partir de uma visão parcial, a "verdade absoluta", sem espaço para questionamentos.
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