quinta-feira, 7 de julho de 2016

A pureza de nosso intento

- Se eu ordenasse a meu general voar de uma flor a outra como borboleta, ou escrever uma tragédia, ou transformar-se numa gaivota, e o general não executasse a ordem recebida, quem, eu ou ele, estaria errado?
- Vós – respondeu com firmeza o princepezinho. 
- Exato. É preciso exigir de cada um o que cada um pode dar – replicou o rei. – A autoridade se baseia na razão. Se ordenares a teu povo que ele se lance ao mar, todos se rebelarão. Eu tenho o direito de exigir obediência porque minhas ordens são razoáveis.
O Pequeno Príncipe, Antoine de Saint-Exupéry, 1946


No Brasil, às vezes tenho a sensação de que não enxergamos as leis como regras necessárias ou obrigatórias. Nem passa pela nossa cabeça a ideia de que a elas temos de nos submeter. A lei por aqui pertence ao âmbito do oficialmente irrealizável, com solene status de utopia, da qual – dada a nobreza de propósitos - não podemos abrir mão. Assim como o inferno – mera coincidência uma eventual semelhança -  o Brasil também está repleto de boas intenções. Não seria absurdo condecorar nossa bela constituição, da qual muitos de nossos inacreditáveis políticos bem entendem, com o título de prova maior da pureza de nosso intento. As leis brasileiras parecem existir no vão afã de elevar a sociedade, ainda que essa se encontre a anos—luz de cumpri-las. Com um entendimento deformado do significado das leis, também a concepção de crime se destorce. Não é de espantar que o não cumprimento de uma lei de responsabilidade fiscal não seja considerado violação por muitos. Delitos, comuns ou administrativos, desaparecem quando muitos os praticam. Fica tudo no terreno do “era pra ser”. Afinal, a lei ninguém cumpre mesmo! A simplicidade dos meus argumentos descortina uma notória falta de intimidade com o universo jurídico. Deparo-me, vez por outra, com decisões judiciais sobre internamentos. Via de regra, são ordens que ferem o institucionalmente viável. Fazer o quê, se “a saúde é um direito de todos e um dever do estado”? O SUS, tal qual se propõe, é impraticável e ineficiente, mas ai de quem ousar dizê-lo! Qual o problema de adequar a lei a nossas capacidades? Por que insistimos em negar a realidade e ornamentar uma constituição sistematicamente descumprida? Muito pode e deve ser obedecido. Só não vejo como desumanidade o esforço para aproximar as regulamentações do mundo real. Para seguirmos no mesmo exemplo, um SUS de funções claras teria, certamente, maiores chances de executá-las. Justiça razoável requer condições propícias ao acatamento das leis, além de concretas consequências para quem as descumpre. Assim como generais não voam como borboletas, uma sociedade não se forja no papel. Como diz a sabedoria popular, “papel aguenta tudo”... Gente não.

Nenhum comentário:

Postar um comentário