- Se eu ordenasse a meu general voar de uma flor
a outra como borboleta, ou escrever uma tragédia, ou transformar-se numa
gaivota, e o general não executasse a ordem recebida, quem, eu ou ele, estaria
errado?
- Vós – respondeu com firmeza o princepezinho.
- Exato. É preciso exigir de cada um o que cada um
pode dar – replicou o rei. – A autoridade se baseia na razão. Se ordenares a
teu povo que ele se lance ao mar, todos se rebelarão. Eu tenho o direito de
exigir obediência porque minhas ordens são razoáveis.
O Pequeno Príncipe, Antoine de Saint-Exupéry,
1946
No
Brasil, às vezes tenho a sensação de que não enxergamos as leis como regras
necessárias ou obrigatórias. Nem passa pela nossa cabeça a ideia de que a elas
temos de nos submeter. A lei por aqui pertence ao âmbito do oficialmente
irrealizável, com solene status de utopia, da qual – dada a nobreza de
propósitos - não podemos abrir mão. Assim como o inferno – mera coincidência uma
eventual semelhança - o Brasil também
está repleto de boas intenções. Não seria absurdo condecorar nossa bela
constituição, da qual muitos de nossos inacreditáveis políticos bem entendem,
com o título de prova maior da pureza de nosso intento. As leis brasileiras parecem
existir no vão afã de elevar a sociedade, ainda que essa se encontre a anos—luz
de cumpri-las. Com um entendimento deformado do significado das leis, também a
concepção de crime se destorce. Não é de espantar que o não cumprimento de uma
lei de responsabilidade fiscal não seja considerado violação por muitos. Delitos,
comuns ou administrativos, desaparecem quando muitos os praticam. Fica tudo no
terreno do “era pra ser”. Afinal, a lei ninguém cumpre mesmo! A simplicidade
dos meus argumentos descortina uma notória falta de intimidade com o universo
jurídico. Deparo-me, vez por outra, com decisões judiciais sobre internamentos.
Via de regra, são ordens que ferem o institucionalmente viável. Fazer o quê, se
“a saúde é um direito de todos e um dever do estado”? O SUS, tal qual se
propõe, é impraticável e ineficiente, mas ai de quem ousar dizê-lo! Qual o
problema de adequar a lei a nossas capacidades? Por que insistimos em negar a
realidade e ornamentar uma constituição sistematicamente descumprida? Muito
pode e deve ser obedecido. Só não vejo como desumanidade o esforço para aproximar
as regulamentações do mundo real. Para seguirmos no mesmo exemplo, um SUS de
funções claras teria, certamente, maiores chances de executá-las. Justiça
razoável requer condições propícias ao acatamento das leis, além de concretas consequências
para quem as descumpre. Assim como generais não voam como borboletas, uma
sociedade não se forja no papel. Como diz a sabedoria popular, “papel aguenta
tudo”... Gente não.
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