“O que está escrito na lei? Como lês? ” Nessa passagem bíblica, registrada no evangelho de Lucas (10:26), Jesus responde, com um duplo questionamento, a um doutor da lei que o abordara perguntando o que deveria fazer para ter a vida eterna. Primeiramente, quero esclarecer que esse texto do Matutando o Brasil não se trata de um sermão. Antes, procura, assim como os outros textos do blog, trazer uma reflexão.
Há
algum tempo já se diz que estamos na “era da informação”, que nos encontramos
até numa guerra de informação, o bem mais precioso no mercado. A rapidez e a
facilidade com que circulam notícias, boatos, dados financeiros, fotos etc.
chega a ser estonteante. Um dos perigos que vêm sendo apontados é a distorção
de fatos, gerando factoides que são propagados – e frequentemente aceitos –
como verdade, especialmente quando há forte apelo emocional e reforço dos
preconceitos. Muitas vezes fica difícil separar o joio do trigo, já que a
informação anda com maior potencial de contaminação do que muita carne por aí.
Nesse
contexto, é interessante a dupla pergunta de Jesus ao doutor: “O que está
escrito? ”, ou seja, quais são os dados apresentados; e “Como lês? ”, quer
dizer, como ele, um especialista, analisa e interpreta tais dados. Temos aí no
mínimo dois problemas. O primeiro refere-se à informação em si – se está
adequada, incompleta ou adulterada. Até no meio científico, no qual deveria
reinar o maior respeito pela busca da verdade e pela veracidade dos dados,
encontram-se maçãs podres, para defender interesses ideológicos e financeiros.
A fonte dos dados é de confiança? Para quem?
Uma
outra questão é a da análise desses dados. “Não existem fatos, apenas
interpretações”, diz Nietzsche. Ora, se especialistas muitas vezes divergem
sobre determinado assunto, como fica o pobre do leigo? Imagine o desespero de
pacientes que passam por diversos médicos, com opiniões conflitantes; a batalha
de argumentos nos tribunais, eventualmente com direito a deliberação por júri
popular; o conflito de ideias e propostas na economia, com impacto direto na
vida do cidadão. Um tema quente do momento é a Reforma da Previdência. Os
debates geralmente começam com a tentativa de definição da necessidade – ou não
– de uma reforma de fato, com base na presença ou ausência de déficit nas
contas. Nesse ponto não há acordo entre o governo, que afirma categoricamente
haver um déficit monstruoso e que algo precisa ser feito “para ontem”, e a
ANFIP (Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil)
e Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos),
que defendem a existência de um superávit na previdência, argumentando que o
governo não faz o cálculo como deveria (e não usa o dinheiro como deveria).
Quem tem razão?
Há
quem recuse terminantemente qualquer menção a proposta nesse campo, e há quem
acredite que deva ocorrer sim alguma mudança, mesmo que não nos moldes
apresentados pelo governo. A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) se pronunciou
contra a reforma, pelo menos da maneira como ela está sendo sugerida. Um dos
pontos levantados é que a proposta não contempla as desigualdades reais,
buscando aplicar a todos as mesmas regras. De qualquer modo, as discussões
estão acontecendo. Mas os cidadãos estão participando dela? No regime
democrático, o intuito é que as pessoas estejam por dentro do que se passa no
país, assim como sabem (ou deveriam saber) o que ocorre no bairro onde moram,
para minimamente poderem tomar decisões ou ao menos dizer que não conseguem
decidir. Se não for assim, os representantes do povo estarão representando
interesses diversos da “voz do povo”. Numa época em que a população está farta
da politicagem em meio aos escândalos de corrupção, é até compreensível a
postura daqueles que não querem discutir absolutamente nada que venha do
governo, pois não enxergam moral nenhuma nos políticos e desconfiam de suas
intenções e seus cronogramas. Porém, se não houver debates, o que haverá?
Um
grande problema é que, quando há discussões entre populares, mesmo entre amigos
e colegas, temos tido a infelicidade de ver muita briga e separação; quanto
mais quando se trata de lidar com quem é “diferente”. Continuando assim, de
pouco adianta checar e analisar as informações, pois as opiniões já estão
formadas, os ânimos acesos e os preconceitos, fortalecidos. A conversa de Jesus
com o doutor da lei culmina na parábola do bom samaritano, bastante conhecida.
O doutor pergunta ao mestre: “Quem é meu próximo? ”, em sequência à proclamação
do mandamento “Amarás a teu próximo como a ti mesmo”. Então Jesus conta a
parábola. Aqui fica, além das duas perguntas do título, também esta: quem é meu
próximo?
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