quarta-feira, 22 de março de 2017

O que está escrito? Como lês?


“O que está escrito na lei? Como lês? ” Nessa passagem bíblica, registrada no evangelho de Lucas (10:26), Jesus responde, com um duplo questionamento, a um doutor da lei que o abordara perguntando o que deveria fazer para ter a vida eterna. Primeiramente, quero esclarecer que esse texto do Matutando o Brasil não se trata de um sermão. Antes, procura, assim como os outros textos do blog, trazer uma reflexão.

Há algum tempo já se diz que estamos na “era da informação”, que nos encontramos até numa guerra de informação, o bem mais precioso no mercado. A rapidez e a facilidade com que circulam notícias, boatos, dados financeiros, fotos etc. chega a ser estonteante. Um dos perigos que vêm sendo apontados é a distorção de fatos, gerando factoides que são propagados – e frequentemente aceitos – como verdade, especialmente quando há forte apelo emocional e reforço dos preconceitos. Muitas vezes fica difícil separar o joio do trigo, já que a informação anda com maior potencial de contaminação do que muita carne por aí.

Nesse contexto, é interessante a dupla pergunta de Jesus ao doutor: “O que está escrito? ”, ou seja, quais são os dados apresentados; e “Como lês? ”, quer dizer, como ele, um especialista, analisa e interpreta tais dados. Temos aí no mínimo dois problemas. O primeiro refere-se à informação em si – se está adequada, incompleta ou adulterada. Até no meio científico, no qual deveria reinar o maior respeito pela busca da verdade e pela veracidade dos dados, encontram-se maçãs podres, para defender interesses ideológicos e financeiros. A fonte dos dados é de confiança? Para quem?

Uma outra questão é a da análise desses dados. “Não existem fatos, apenas interpretações”, diz Nietzsche. Ora, se especialistas muitas vezes divergem sobre determinado assunto, como fica o pobre do leigo? Imagine o desespero de pacientes que passam por diversos médicos, com opiniões conflitantes; a batalha de argumentos nos tribunais, eventualmente com direito a deliberação por júri popular; o conflito de ideias e propostas na economia, com impacto direto na vida do cidadão. Um tema quente do momento é a Reforma da Previdência. Os debates geralmente começam com a tentativa de definição da necessidade – ou não – de uma reforma de fato, com base na presença ou ausência de déficit nas contas. Nesse ponto não há acordo entre o governo, que afirma categoricamente haver um déficit monstruoso e que algo precisa ser feito “para ontem”, e a ANFIP (Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil) e Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), que defendem a existência de um superávit na previdência, argumentando que o governo não faz o cálculo como deveria (e não usa o dinheiro como deveria). Quem tem razão?

Há quem recuse terminantemente qualquer menção a proposta nesse campo, e há quem acredite que deva ocorrer sim alguma mudança, mesmo que não nos moldes apresentados pelo governo. A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) se pronunciou contra a reforma, pelo menos da maneira como ela está sendo sugerida. Um dos pontos levantados é que a proposta não contempla as desigualdades reais, buscando aplicar a todos as mesmas regras. De qualquer modo, as discussões estão acontecendo. Mas os cidadãos estão participando dela? No regime democrático, o intuito é que as pessoas estejam por dentro do que se passa no país, assim como sabem (ou deveriam saber) o que ocorre no bairro onde moram, para minimamente poderem tomar decisões ou ao menos dizer que não conseguem decidir. Se não for assim, os representantes do povo estarão representando interesses diversos da “voz do povo”. Numa época em que a população está farta da politicagem em meio aos escândalos de corrupção, é até compreensível a postura daqueles que não querem discutir absolutamente nada que venha do governo, pois não enxergam moral nenhuma nos políticos e desconfiam de suas intenções e seus cronogramas. Porém, se não houver debates, o que haverá?


Um grande problema é que, quando há discussões entre populares, mesmo entre amigos e colegas, temos tido a infelicidade de ver muita briga e separação; quanto mais quando se trata de lidar com quem é “diferente”. Continuando assim, de pouco adianta checar e analisar as informações, pois as opiniões já estão formadas, os ânimos acesos e os preconceitos, fortalecidos. A conversa de Jesus com o doutor da lei culmina na parábola do bom samaritano, bastante conhecida. O doutor pergunta ao mestre: “Quem é meu próximo? ”, em sequência à proclamação do mandamento “Amarás a teu próximo como a ti mesmo”. Então Jesus conta a parábola. Aqui fica, além das duas perguntas do título, também esta: quem é meu próximo?

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