quarta-feira, 15 de março de 2017

O português que todo mundo fala e o gramatiquês

Parece que existem duas línguas no Brasil: aquela que as pessoas falam ou escrevem nas mídias sociais e a que é ensinada nas salas de aula pelos professores de português. O fenômeno não ocorre somente com o nosso idioma.

Existe um português mais formal, cultivado pelos letrados, ensinado nos compêndios, exigido nas provas de vestibulares e concursos. Quem o pratica, procura obedecer aos preceitos da gramática dita tradicional e olha com desdém e ironia os desvios daqueles que lhe ignoram as regras. Tal linguagem predomina, por exemplo, na escrita dos livros, de textos acadêmicos, na correspondência oficial e comercial, na fala mais cerimoniosa de certos ambientes. Alguns de seus cultores mais radicais chegam a considerá-la a única forma aceitável de comunicação, assumindo atitudes de policiamento e de censura diante da linguagem espontânea e coloquial do povão. Ao usuário caberia falar como se escreve, seguindo, sem atenuantes, os ditames de uma gramática fixa e imutável.

No outro extremo, existem os que afirmam que o idioma é produto do povo, não um sistema de regras e princípios ditados pelos filólogos e gramáticos. O povo é o único soberano mestre da linguagem: suas sentenças são sem apelação e o uso tudo justifica.

Sob essa dicotomia, subsiste um sistema ideológico bem visível e o primado de uma forma de linguagem sobre outra revela, talvez, um determinado posicionamento filosófico e político. Uma pessoa de tendência conservadora, de ideias tradicionais, que acentuadamente valoriza o argumento de autoridade tende a aceitar unicamente a língua culta com um único padrão pelo qual se devem pautar todas as manifestações da linguagem em qualquer situação de comunicação. Ao contrário, aquele de princípios mais liberais, sensível às mudanças de comportamento em face das transformações que se operam na sociedade, procura, por sua vez, minimizar a importância da gramática e dos gramáticos como norteadores do bem falar e do escrever.

Matutando sobre isso, há de se reconhecer a existência e a necessidade do uso da língua, dita culta e, também, da língua mais espontânea e popular. Querer regê-las dentro do mesmo código seria negar-lhes as particularidades e suas funções específicas. A língua falada, por exemplo, jamais poderá ser idêntica à língua escrita e esta, por sua vez, não obstante o esforço do escritor, sempre será diferente, pois dispõe múltiplos e variados recursos intransponíveis para a grafia.

A gramática, ensinada na escola, com seus princípios e normas, ocupa-se preferencialmente com a língua culta de menos uso que a língua falada pelo povo. Escrever, no entanto, de acordo com seus preceitos é justificável e exigido em determinadas situações de comunicação.

A noção de erro, em consequência, não é a mesma nas duas formas de comunicação. Aquilo que não é permitido quando se redige em situações mais formais pode ser justificado quando se usa a língua coloquial e espontânea na publicidade e nos blogs, por exemplo.

Querer a uniformização da variante culta e da popular seria pura utopia. Pretender, por outro lado, abolir o ensino da gramática na escola seria uma irresponsabilidade sem tamanho. A ela compete a importante missão de registrar os fatos da língua padrão, que se superpõe aos falares regionais, bem como estabelecer os preceitos não só do como se escreve (língua escrita), mas também de como se fala (língua falada). A demora dos registros dos fatos linguísticos, já amplamente empregados e assimilados no idioma, acentua não raro o descompasso entre o português da sala de aula e o português do povo.

A língua culta e a língua popular são ramos do mesmo tronco que mutuamente se completam e se enriquecem. Há espaço para as duas variantes. A escolha de cada uma delas vai depender da situação de comunicação em que se encontra o usuário da língua.

Tais diferenças não empobrecem o idioma, mas, pelo contrário, revelam a sua multiplicidade e riqueza.

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