terça-feira, 1 de agosto de 2017

A quimera do Brasil sem jeito

Jeito: manobra engenhosa para converter o impossível em possível, o injusto em justo e o ilegal em legal [1]; ou ainda: processo brasileiro genuíno de resolver dificuldades apesar das regras, códigos e leis [2]. Em Brazil's Legal Culture: The Jeito Revisited (1984), Keith S. Rosenn [3] divide a instituição paralegal the jeito (jeitinho, para os íntimos) em cinco tipos de comportamento:
  1. Um membro do governo não cumpre uma obrigação legal por vantagem financeira ou de status.
  2. Um cidadão emprega subterfúgio para contornar uma obrigação legal que é sensível e justa.
  3. Um servidor público cumpre a sua obrigação legal de forma rápida somente em troca de vantagem financeira ou de status.
  4. Um cidadão contorna uma obrigação legal que é irrealista, injusta ou economicamente ineficiente.
  5. Um funcionário público desvia-se de sua obrigação por convicção de que a lei é irrealista, injusta ou economicamente ineficiente.
(Dedilhando o jeito em amplo espectro, tenho a impressão de que nossa tolerância para com os três primeiros tipos de jeito encurtou. Uma ampla revisão das obrigações legais dos brasileiros não eliminaria os dois últimos?)

O jeito como legado luso-romano

Para Rosenn, o jeitinho brasileiro nasce da atitude portuguesa diante da lei, que, por sua vez, foi fundamentalmente influenciada pela lei romana, pelo pluralismo legal e pelo catolicismo. Rosenn acrescenta à genese jeitosa o patrimonialismo, a confusão burocrática e a lentidão administrativa, além de heranças culturais, como: a elevada tolerância com a corrupção, falta de responsabilidade civil, a profunda desigualdade socioeconômicasentimentalismo e a vontade de chegar a um meio-termo.

Influência da lei romana
A legislação romana preocupava-se em construir um sistema harmonioso e universal de normas éticas de conduta. Sua influência sobre a lei portuguesa foi tal que as regras costumeiras foram substituídas por objetivos éticos e padrões de conduta a serem atingidos. O dualismo entre a lei e a vida prática persiste até hoje no Brasil.

Pluralismo legal
A lei romana admitia a personalidade das leis. A lei a ser aplicada sobre uma pessoa dependia mais do grupo a que pertencia do que do território em que habitava. Em Portugal medieval, reis, nobres, militares, membros do clero, professores e estudantes universitários, mercadores e membros de outras corporações eram geralmente isentos da jurisdição ordinária e sujeitos a leis e cortes especiais.

Catolicismo
Historicamente, lei e religião se misturavam na Península Ibérica. Com dogmas rígidos, intolerância moral, formalismo e lentidão em adaptar-se, o Catolicismo estimulou a prática do jeito.

Patrimonialismo
A forma como Portugal administrava o Brasil também contribuiu para o nosso jeitinho. Os administradores estavam ligados ao rei por lealdade pessoal ou lucro e não por dever oficial. Todas as taxas e tributos eram para rendimento pessoal do soberano e não para a nação. Uma posição administrativa na colônia era considerada um privilégio pessoal recebido ou comprado do rei, uma franquia para ganho privado.
Estranho ao patrimonialismo, o conceito torto de serviço público gerou baixa expectativa de que os oficiais do governo agissem de acordo com o interesse público. Assim, ao invés de serviços públicos, os cidadãos do Brasil Colônia buscavam favores pessoais do governo em troca de um agrado. O patrimonialismo também produziu um sistema legal imprevisível e personalista.

Confusão burocrática e lentidão administrativa
         Intermináveis demoras e entraves burocráticos produziram exagerada centralização de poder em Lisboa. A justiça era barganhada como qualquer mercadoria. Judicializar questões era oneroso, consumia tempo e papelada. Além disso, as decisões dos magistrados nunca eram a palavra final, já que, em última instância, cabia recurso aos humores do rei.

Elevada tolerância com a corrupção
Diferente da coroa espanhola, que dispunha de civilizações indígenas autocráticas facilitadoras do controle, Portugal não tinha como controlar as terras de seu imenso império. A coroa portuguesa também não estava disposta a investir na infraestrutura necessária para garantir o cumprimento da lei além-mar. Dando amplos poderes juridicionais aos brasileiros, Portugal enfrentou dificuldade em reafirmar autoridade sobre os latifundiários. Os coronéis "praticavam" a justiça e o descumprimento das leis era institucionalizado.
As políticas mercantilistas e a taxação pesada incentivaram a corrupção. Evasão de impostos e contrabando tornou-se meio de vida, não só no Brasil, mas também em Portugal. Para completar, Portugal punia criminosos com o exílio para o Brasil, que virou uma espécie de campo de despejo de pessoas de pouco respeito às leis. Como sabemos, poucos colonos vieram ao Brasil com intenção de povoamento. A ideia era ceifar riquezas e retornar o quanto antes a Portugal.
Em flagrante tolerância à corrupção, leis e decretos eram frequentemente ajustados a casos individuais. Nem as leis regulando a conduta de magistrados eram observadas. Os magistrados eram proibidos de se casar e fazer negócios com brasileiros. Postos judiciais não podiam ser ocupados por brasileiros, o que frequentemente também era violado.

Falta de responsabilidade cívica
Para Rosenn, vem dos portugueses o fraco senso de lealdade e obrigação para com a sociedade e o forte senso de lealdade e obrigação para com a família e os amigos. Rosenn cita Marcus Cheke: “o português é gentil com cinco categorias de pessoas: sua família, seus amigos, os amigos de sua família, os amigos dos seus amigos e, por último, para com o pedinte no seu caminho. Para com outros concidadãos, ele reconhece pouca obrigação”. Como aplicar a lei a todos com a preferência acima de tudo? O resultado conhecemos: “para os amigos tudo e para os inimigos a lei”.

Profunda desigualdade socioeconômica
A desigualdade judicial acompanha a desigualdade socioeconômica. A despeito da retórica da igualdade, classe social e as conexões pessoais até hoje interferem na aplicação da lei.

Sentimentalismo
O sentimentalismo nacional tende a afrouxar o rigor legal nas múltiplas instâncias do jeito. Entre ajudar alguém de quem se tem pena e respeitar a lei, o brasileiro frequentemente ignora a lei. O “coitado” é alguém com quem criar laços de amizade e, uma vez estabelecidos tais laços, a obrigação pessoal impõe-se sobre a norma legal impessoal e abstrata.

Vontade de chegar a um meio-termo
Temos inegável talento para o compromisso. Rosenn ressalta que a história brasileira é repleta de exemplos de crises superadas por bom-senso e acordo ao invés da aderência estrita à lei ou à doutrina filosófica abstrata.
A prática brasileira de reinterpretar as leis segundo o bom senso tem um ancestral espiritual na Lei da Boa Razão (1769), que encorajava os juízes e advogados a considerar senso comum, costume, legislação comparativa e o espírito da lei como base de decisão. Por bom senso comum entendia-se “de acordo com a lei natural, com os ideais éticos romanos e as práticas de nações cristãs”, uma espécie de precursor legal do jeito.

Em um esforço sobre-humano para deixar o sentimentalismo de lado, repousemos o que nos fizeram na memória. Sigamos, utópicos, rumo à passarela do meio-termo exato entre a malemolência e a rigidez. No horizonte, dúbio de tão tênue, lacrimeja a esperança: tirando o jeito, finda-se a quimera do Brasil sem jeito.


[1] C. Morazé. Le Trois âges du Brésil. (1954)
[2] A. Guerreiro Ramos. Administração e estratégia do desenvolvimento. (1966)
[3] Keith S. Rosenn. Brazil's Legal Culture: The Jeito Revisited. (1984)

2 comentários :

  1. Lia,

    minha querida, quimera é achar que a tolerância com a corrupção diminuiu. A intolerância é contra o pobre, o negro, a mulher, contra o Estado de Direito Democrático que ameace os privilégios das elites. Nunca foi contra a corrupção.

    Filho de desembargadora pode traficar, presidente pode receber mala de dinheiro, rico pode sonegar, juiz de 1a instância pode burlar a lei que quiser, etc etc e incontáveis etcs. Desde que estejam do lado certo da divisão social. Quem está do outro lado se ****. Sempre!

    O acordão do Jucá vai de vento em popa.

    Só fiquei na curiosidade de saber em qual dos jeitos se encaixa o impeachment sem crime, que a classe média arranjou como desculpa pra arrancar o Brasil da rota de modernização, que fatalmente lhe custaria os serviçais que ela se acostumou a ter, e impor o conservadorismo mais obscurantista que eu vi em toda a minha vida.

    Não apenas rasgaram meu voto. Rasgaram minha cidadania. E, infelizmente, não pareço ser o único a se sentir assim.

    Um abraço.
    Aristeu

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  2. Aristeu, amigo querido,

    Só mesmo uma hipérbole otimista pra provocar um texto seu aqui no blog. A postagem já valeu! ;-)

    A desigualdade judicial ainda impera no Brasil (acho que menciono algo do gênero em algum ponto do texto), mas, em uma perspectiva histórica, continuo vendo o copo meio cheio.

    Forte abraço!

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