Jeito: manobra
engenhosa para converter o impossível em possível, o injusto em justo e o
ilegal em legal [1]; ou
ainda: processo brasileiro genuíno de resolver dificuldades apesar das regras,
códigos e leis [2]. Em
Brazil's Legal Culture: The Jeito
Revisited (1984), Keith S. Rosenn [3]
divide a instituição paralegal the jeito (jeitinho, para os íntimos) em cinco tipos de comportamento:
- Um membro do governo não cumpre uma obrigação legal por vantagem financeira ou de status.
- Um cidadão emprega subterfúgio para contornar uma obrigação legal que é sensível e justa.
- Um servidor público cumpre a sua obrigação legal de forma rápida somente em troca de vantagem financeira ou de status.
- Um cidadão contorna uma obrigação legal que é irrealista, injusta ou economicamente ineficiente.
- Um funcionário público desvia-se de sua obrigação por convicção de que a lei é irrealista, injusta ou economicamente ineficiente.
O jeito como legado luso-romano
Para Rosenn, o jeitinho brasileiro nasce da atitude portuguesa diante da lei, que, por
sua vez, foi fundamentalmente influenciada pela lei romana, pelo pluralismo
legal e pelo catolicismo. Rosenn acrescenta à genese jeitosa o patrimonialismo,
a confusão burocrática e a lentidão
administrativa, além de heranças culturais, como: a elevada tolerância com a corrupção, a falta de responsabilidade civil, a profunda desigualdade socioeconômica, o sentimentalismo
e a vontade de chegar a um meio-termo.
Influência da lei romana
A legislação
romana preocupava-se em construir um sistema harmonioso e universal de normas
éticas de conduta. Sua influência sobre a lei portuguesa foi tal que as
regras costumeiras foram substituídas por objetivos éticos e padrões de conduta
a serem atingidos. O dualismo entre a lei e a vida prática persiste até hoje no Brasil.
Pluralismo legal
A lei romana
admitia a personalidade das leis. A lei a ser aplicada sobre uma pessoa
dependia mais do grupo a que pertencia do que do território em que habitava. Em
Portugal medieval, reis, nobres, militares, membros do clero, professores e
estudantes universitários, mercadores e membros de outras corporações eram geralmente isentos
da jurisdição ordinária e sujeitos a leis e cortes especiais.
Catolicismo
Historicamente, lei e religião se misturavam na Península Ibérica.
Com dogmas rígidos, intolerância moral, formalismo e lentidão em adaptar-se, o
Catolicismo estimulou a prática do jeito.
Patrimonialismo
A forma como
Portugal administrava o Brasil também contribuiu para o nosso jeitinho. Os administradores estavam ligados ao rei por lealdade pessoal ou lucro e não por dever oficial. Todas as taxas e
tributos eram para rendimento pessoal do soberano e não para a nação. Uma posição administrativa na colônia era considerada um
privilégio pessoal recebido ou comprado do rei, uma franquia para ganho
privado.
Estranho ao patrimonialismo, o conceito torto de serviço público gerou baixa expectativa de que os oficiais do governo agissem de acordo com o interesse
público. Assim, ao invés de
serviços públicos, os cidadãos do Brasil Colônia buscavam favores pessoais do
governo em troca de um agrado. O patrimonialismo também produziu um sistema legal imprevisível e personalista.
Confusão burocrática e lentidão administrativa
Intermináveis demoras e entraves
burocráticos produziram exagerada centralização de poder em Lisboa. A justiça
era barganhada como qualquer mercadoria. Judicializar questões era oneroso, consumia tempo e papelada. Além
disso, as decisões dos magistrados nunca eram a palavra final, já que, em
última instância, cabia recurso aos humores do rei.
Elevada tolerância com a corrupção
Diferente da
coroa espanhola, que dispunha de civilizações indígenas autocráticas facilitadoras
do controle, Portugal não tinha como controlar as terras de seu imenso império.
A coroa portuguesa também não estava disposta a investir na infraestrutura necessária
para garantir o cumprimento da lei além-mar. Dando amplos poderes
juridicionais aos brasileiros, Portugal enfrentou dificuldade em
reafirmar autoridade sobre os latifundiários. Os coronéis "praticavam" a justiça e o descumprimento das leis era institucionalizado.
As políticas mercantilistas
e a taxação pesada incentivaram a corrupção. Evasão de
impostos e contrabando tornou-se meio de vida, não só no Brasil, mas também em
Portugal. Para completar, Portugal punia criminosos com o exílio para o Brasil,
que virou uma espécie de campo de despejo de pessoas de pouco respeito às leis.
Como sabemos, poucos colonos vieram ao Brasil com intenção de povoamento. A
ideia era ceifar riquezas e retornar o quanto antes a Portugal.
Em flagrante tolerância à corrupção, leis e decretos
eram frequentemente ajustados a casos individuais. Nem as leis regulando a
conduta de magistrados eram observadas. Os magistrados eram proibidos de se
casar e fazer negócios com brasileiros. Postos judiciais não podiam ser
ocupados por brasileiros, o que frequentemente também era violado.
Falta de responsabilidade cívica
Para Rosenn,
vem dos portugueses o fraco senso de lealdade e obrigação para com a sociedade
e o forte senso de lealdade e obrigação para com a família e os amigos. Rosenn
cita Marcus Cheke: “o português é gentil com cinco categorias de pessoas: sua
família, seus amigos, os amigos de sua família, os amigos dos seus amigos e,
por último, para com o pedinte no seu caminho. Para com outros concidadãos, ele
reconhece pouca obrigação”. Como aplicar a lei a todos com a preferência acima de tudo? O resultado conhecemos: “para os amigos tudo e para os inimigos a lei”.
Profunda desigualdade socioeconômica
A desigualdade
judicial acompanha a desigualdade socioeconômica. A despeito da
retórica da igualdade, classe social e as conexões pessoais até hoje interferem na aplicação da
lei.
Sentimentalismo
O
sentimentalismo nacional tende a afrouxar o rigor legal nas múltiplas
instâncias do jeito. Entre ajudar alguém de quem se tem pena e respeitar a lei,
o brasileiro frequentemente ignora a lei. O “coitado” é alguém com quem criar
laços de amizade e, uma vez estabelecidos tais laços, a obrigação pessoal
impõe-se sobre a norma legal impessoal e abstrata.
Vontade de chegar a um meio-termo
Temos inegável talento
para o compromisso. Rosenn ressalta que a história brasileira é repleta de
exemplos de crises superadas por bom-senso e acordo ao invés da aderência
estrita à lei ou à doutrina filosófica abstrata.
A prática
brasileira de reinterpretar as leis segundo o bom senso tem um ancestral
espiritual na Lei da Boa Razão (1769), que encorajava os juízes e advogados a
considerar senso comum, costume, legislação comparativa e o espírito da lei
como base de decisão. Por bom senso comum entendia-se “de acordo com a lei natural,
com os ideais éticos romanos e as práticas de nações cristãs”, uma espécie de precursor legal do jeito.
Em um esforço sobre-humano para deixar o sentimentalismo de lado, repousemos o que nos fizeram na memória. Sigamos, utópicos, rumo à passarela do meio-termo exato entre a malemolência e a rigidez. No horizonte, dúbio de tão tênue, lacrimeja a esperança: tirando o jeito, finda-se a quimera do Brasil sem jeito.
Lia,
ResponderExcluirminha querida, quimera é achar que a tolerância com a corrupção diminuiu. A intolerância é contra o pobre, o negro, a mulher, contra o Estado de Direito Democrático que ameace os privilégios das elites. Nunca foi contra a corrupção.
Filho de desembargadora pode traficar, presidente pode receber mala de dinheiro, rico pode sonegar, juiz de 1a instância pode burlar a lei que quiser, etc etc e incontáveis etcs. Desde que estejam do lado certo da divisão social. Quem está do outro lado se ****. Sempre!
O acordão do Jucá vai de vento em popa.
Só fiquei na curiosidade de saber em qual dos jeitos se encaixa o impeachment sem crime, que a classe média arranjou como desculpa pra arrancar o Brasil da rota de modernização, que fatalmente lhe custaria os serviçais que ela se acostumou a ter, e impor o conservadorismo mais obscurantista que eu vi em toda a minha vida.
Não apenas rasgaram meu voto. Rasgaram minha cidadania. E, infelizmente, não pareço ser o único a se sentir assim.
Um abraço.
Aristeu
Aristeu, amigo querido,
ResponderExcluirSó mesmo uma hipérbole otimista pra provocar um texto seu aqui no blog. A postagem já valeu! ;-)
A desigualdade judicial ainda impera no Brasil (acho que menciono algo do gênero em algum ponto do texto), mas, em uma perspectiva histórica, continuo vendo o copo meio cheio.
Forte abraço!