sábado, 4 de fevereiro de 2017

“Pátria Madrasta Vil”: uma revolução silenciosa em curso?

Descobri recentemente um texto intitulado “Pátria Madrasta Vil”. A composição, de autoria de Clarice Zeitel Vianna Silva, na época estudante de direito na UFRJ, venceu, junto com mais 99 textos, um concurso nacional organizado pelo jornal Folha Dirigida e UNESCO Brasil, envolvendo 50.000 candidatos. O ano era 2008. A UNESCO patrocinou a iniciativa como meio de apoio à divulgação dos oito objetivos para o desenvolvimento do Milênio aprovados pelas Nações Unidas em 2000 por 189 países, entre eles o Brasil, a serem trabalhados até o ano 2015. Dentre os objetivos, constavam a eliminação da pobreza e combate à desigualdade, temas centrais do referido concurso. Os 100 textos foram reunidos e publicados em uma coletânea disponível na biblioteca virtual da UNESCO. Para os interessados, o livro é acessível no seguinte endereço: http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001576/157625m.pdf

O texto-poema de Clarice acabou naquela época ganhando destaque nacional. A autora foi convidada em diversos eventos. O conteúdo provocador e ácido incendiou as redes sociais, seja para ataca-la ou defende-la, alvo de críticas e elogios, tanto na forma como no conteúdo do texto. Por ser extenso, só reproduzirei aqui os primeiros versos e comentarei outros trechos. Reitero portanto meu convite aos interessados para acessar o retro mencionado link e consultar a versão integral.

Assim começa o poema intitulado “Pátria Madrasta Vil”:


“Onde já se viu tanto excesso de falta?Abundância de inexistência...Exagero de escassez...Contraditórios?Então aí está!O novo nome do nosso país!Não pode haver sinônimo melhor para BRASIL.”

Partindo de um trecho do hino nacional, “dos filhos deste solo és mãe gentil, pátria amada, Brasil”, Clarice elabora uma extensa argumentação rejeitando a parábola ora proposta de “mãe gentil” para a pátria Brasil. Em subsequentes versos, sublinha contradições, enganações, hipocrisias e ilusões vividas por sucessivas gerações de cidadãos “que não aprenderam a ser cidadão” (sic).

No decorrer de sua aclamação, acaba enaltecendo a necessidade por mudanças estruturais, revolucionárias, que “quebrem esse sistema-esquema social montado” através de mudanças que, de fato, transformem e não simplesmente reproduzam os referido esquema sob novas máscaras.

Ela reconhece, no entanto, que para tal mudança ocorrer, falta um fator fundamental que permita o alcance da igualdade na sociedade brasileira: “nossa participação efetiva”. Finaliza afirmando que somente uma revolução estrutural “de dentro para fora e que não exclua, nada nem ninguém de seus efeitos” conseguirá acabar com a pobreza e desigualdade no Brasil, pedindo portanto um posicionamento individual perante o mundo, perante o coletivo, que ela resume na expressão “cada um por todos”.

Não é minha intenção neste artigo julgar ou revisitar o debate da época. Como já disse, muito já foi escrito a respeito em trocas extensivas de opiniões e contra afirmações para as quais pouco teria de interessante a somar. Quase uma década se passou desde então. Os objetivos onusianos do milênio estabelecidos para 2015 foram reconduzidos em essência, mesmo que sob renovadas luzes, na chamada agenda “pós 2015”. O grito de Clarice quanto à problemática estrutural brasileira, parece-me, ganhou novo destaque com os acontecimentos destes últimos anos, independentemente dos julgamentos de valor sobre a veracidade ou coerência das afirmações por ela listadas.

O fato é que a leitura do texto me remeteu aos ensinamentos de um professor de filosofia chileno, Luiz Razeto, que veio compartilhar visões da academia sobre os contextos e condições de criação de uma nova civilização, durante conferência, ano passado, em um congresso sobre cidadania planetária em Fortaleza – CE.

Não pude deixar de reparar que certas das afirmações de Clarice ecoavam no discurso do professor. Para resumir, irei manter-me no eixo em torno do qual este desenvolveu sua apresentação: a capacidade de inclusão como fator fundamental a partir do qual pode-se avaliar a sobrevivência de uma civilização ou nascimento, em meio a muitas turbulências, de uma nova civilização enquanto a antiga se desintegra, seja gradualmente, seja abruptamente, em processo caótico de transição até que os novos paradigmas consigam sobrepor-se aos antigos.

O professor enfatizou que, enquanto a deterioração acontece essencialmente à nível macrossocial nas grandes e condicionadas estruturas políticas, econômicas e culturais que começam a não mais conseguir cumprir com suas missões, a nova civilização só pode começar a nível microssocial, demandando participação cidadã ativa e, claro, bastante tempo, através de iniciativas particulares e concretas.

Clarice, em seu poema, lançou um grito um tanto pessimista sobre a situação da sociedade Brasileira, lamentando a ausência do cidadão para que transformações consigam nascer e se desenvolver. Dez anos depois, à luz dos eventos mais recentes e observações pessoais, portanto, sujeitas a clara subjetividade, devo confessar certo otimismo apesar dos obstáculos e situações enfrentados nas grandes estruturas da sociedade.

Vejo cidadãos mais ativos, cobrando posturas, quaisquer que sejam, em debate caloroso e saudável sobre tais estruturas. Mas também vejo inúmeras iniciativas concretas de ajuda ao próximo. Brasileiros estão cada vez mais engajados em ajudar em associações, ONGs e outras entidades, formais ou informais para auxiliar os necessitados. Á nível mais pessoal ainda, vejo mudanças em perfis de consumo, uma consciência mais esclarecida surgindo sobre a necessidade do respeito à natureza. Virou rotina o uso dos espaços públicos e de trânsito na cidade, para esporte e passeios nos fins de semana, envolvendo família e amigos, espaços que até pouco tempo não eram usados para tais.

Seguindo a raciocínio proposto pelo Professor Razeto, uma transformação estaria de fato ocorrendo à nível microssocial, talvez ainda tímida, minoritária mas ganhando novos adeptos em ritmo acelerado pelo que consigo testemunhar. Em menos de 10 anos, em meio à uma crise sistêmica, saímos de uma situação de lamentação e críticas ásperas para uma nova era de ação local engajada, servindo de exemplo multiplicador. Como mencionado em artigo escrito por uma das coautoras do Matutando o Brasil, “um novo Brasil está germinando”. Sim, Clarice, a sua sonhada revolução parece já estar em curso, talvez ainda silenciosa, mas bem real. Não há mais lugar para exacerbado pessimismo. Por mais que muito haja a ser feito e enfrentado, a roda brasileira da fortuna começou a girar, incentivando participação cidadã ativa. Paremos de focar o que não funciona e elejamos a ação local, aquela bem ao nosso alcance como método eficaz de verdadeira e testemunhável transformação. São estas ações que renovam energias e esperanças favorecendo a construção de um país e, por consequência, de um mundo menos pobre e desigual, fundamentado na prática da inclusão e do respeito a si mesmo, ao próximo e à natureza.

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