Descobri
recentemente um texto intitulado “Pátria Madrasta Vil”. A composição, de
autoria de Clarice Zeitel Vianna Silva, na época estudante de direito na UFRJ,
venceu, junto com mais 99 textos, um concurso nacional organizado pelo jornal
Folha Dirigida e UNESCO Brasil, envolvendo 50.000 candidatos. O ano era 2008. A
UNESCO patrocinou a iniciativa como meio de apoio à divulgação dos oito
objetivos para o desenvolvimento do Milênio aprovados pelas Nações Unidas em
2000 por 189 países, entre eles o Brasil, a serem trabalhados até o ano 2015.
Dentre os objetivos, constavam a eliminação da pobreza e combate à
desigualdade, temas centrais do referido concurso. Os 100 textos foram reunidos
e publicados em uma coletânea disponível na biblioteca virtual da UNESCO. Para
os interessados, o livro é acessível no seguinte endereço: http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001576/157625m.pdf
O
texto-poema de Clarice acabou naquela época ganhando destaque nacional. A
autora foi convidada em diversos eventos. O conteúdo provocador e ácido
incendiou as redes sociais, seja para ataca-la ou defende-la, alvo de críticas
e elogios, tanto na forma como no conteúdo do texto. Por ser extenso, só
reproduzirei aqui os primeiros versos e comentarei outros trechos. Reitero
portanto meu convite aos interessados para acessar o retro mencionado link e
consultar a versão integral.
Assim começa o poema intitulado “Pátria Madrasta Vil”:
“Onde já se viu tanto excesso de falta?Abundância de inexistência...Exagero de escassez...Contraditórios?Então aí está!O novo nome do nosso país!Não pode haver sinônimo melhor para BRASIL.”
Partindo
de um trecho do hino nacional, “dos filhos deste solo és mãe gentil, pátria
amada, Brasil”, Clarice elabora uma extensa argumentação rejeitando a parábola
ora proposta de “mãe gentil” para a pátria Brasil. Em subsequentes versos,
sublinha contradições, enganações, hipocrisias e ilusões vividas por sucessivas
gerações de cidadãos “que não aprenderam a ser cidadão” (sic).
No
decorrer de sua aclamação, acaba enaltecendo a necessidade por mudanças
estruturais, revolucionárias, que “quebrem esse sistema-esquema social montado”
através de mudanças que, de fato, transformem e não simplesmente reproduzam os
referido esquema sob novas máscaras.
Ela reconhece, no entanto, que para tal mudança ocorrer, falta um fator fundamental que permita o alcance da igualdade na sociedade brasileira: “nossa participação efetiva”. Finaliza afirmando que somente uma revolução estrutural “de dentro para fora e que não exclua, nada nem ninguém de seus efeitos” conseguirá acabar com a pobreza e desigualdade no Brasil, pedindo portanto um posicionamento individual perante o mundo, perante o coletivo, que ela resume na expressão “cada um por todos”.
Não
é minha intenção neste artigo julgar ou revisitar o debate da época. Como já
disse, muito já foi escrito a respeito em trocas extensivas de opiniões e
contra afirmações para as quais pouco teria de interessante a somar. Quase uma
década se passou desde então. Os objetivos onusianos do milênio estabelecidos
para 2015 foram reconduzidos em essência, mesmo que sob renovadas luzes, na
chamada agenda “pós 2015”. O grito de Clarice quanto à problemática estrutural
brasileira, parece-me, ganhou novo destaque com os acontecimentos destes
últimos anos, independentemente dos julgamentos de valor sobre a veracidade ou
coerência das afirmações por ela listadas.
O
fato é que a leitura do texto me remeteu aos ensinamentos de um professor de
filosofia chileno, Luiz Razeto, que veio compartilhar visões da academia sobre
os contextos e condições de criação de uma nova civilização, durante
conferência, ano passado, em um congresso sobre cidadania planetária em
Fortaleza – CE.
Não
pude deixar de reparar que certas das afirmações de Clarice ecoavam no discurso
do professor. Para resumir, irei manter-me no eixo em torno do qual este
desenvolveu sua apresentação: a capacidade de inclusão como fator fundamental a
partir do qual pode-se avaliar a sobrevivência de uma civilização ou
nascimento, em meio a muitas turbulências, de uma nova civilização enquanto a
antiga se desintegra, seja gradualmente, seja abruptamente, em processo caótico
de transição até que os novos paradigmas consigam sobrepor-se aos antigos.
O
professor enfatizou que, enquanto a deterioração acontece essencialmente à
nível macrossocial nas grandes e condicionadas estruturas políticas, econômicas
e culturais que começam a não mais conseguir cumprir com suas missões, a nova
civilização só pode começar a nível microssocial, demandando participação
cidadã ativa e, claro, bastante tempo, através de iniciativas particulares e
concretas.
Clarice,
em seu poema, lançou um grito um tanto pessimista sobre a situação da sociedade
Brasileira, lamentando a ausência do cidadão para que transformações consigam
nascer e se desenvolver. Dez anos depois, à luz dos eventos mais recentes e
observações pessoais, portanto, sujeitas a clara subjetividade, devo confessar
certo otimismo apesar dos obstáculos e situações enfrentados nas grandes
estruturas da sociedade.
Vejo
cidadãos mais ativos, cobrando posturas, quaisquer que sejam, em debate
caloroso e saudável sobre tais estruturas. Mas também vejo inúmeras iniciativas
concretas de ajuda ao próximo. Brasileiros estão cada vez mais engajados em
ajudar em associações, ONGs e outras entidades, formais ou informais para
auxiliar os necessitados. Á nível mais pessoal ainda, vejo mudanças em perfis
de consumo, uma consciência mais esclarecida surgindo sobre a necessidade do
respeito à natureza. Virou rotina o uso dos espaços públicos e de trânsito na
cidade, para esporte e passeios nos fins de semana, envolvendo família e
amigos, espaços que até pouco tempo não eram usados para tais.
Seguindo
a raciocínio proposto pelo Professor Razeto, uma transformação estaria de fato
ocorrendo à nível microssocial, talvez ainda tímida, minoritária mas ganhando
novos adeptos em ritmo acelerado pelo que consigo testemunhar. Em menos de 10
anos, em meio à uma crise sistêmica, saímos de uma situação de lamentação e
críticas ásperas para uma nova era de ação local engajada, servindo de exemplo
multiplicador. Como mencionado em artigo escrito por uma das coautoras do Matutando o Brasil,
“um novo Brasil está germinando”. Sim, Clarice, a sua sonhada revolução parece
já estar em curso, talvez ainda silenciosa, mas bem real. Não há mais lugar
para exacerbado pessimismo. Por mais que muito haja a ser feito e enfrentado, a
roda brasileira da fortuna começou a girar, incentivando participação cidadã
ativa. Paremos de focar o que não funciona e elejamos a ação local, aquela bem
ao nosso alcance como método eficaz de verdadeira e testemunhável
transformação. São estas ações que renovam energias e esperanças favorecendo a
construção de um país e, por consequência, de um mundo menos pobre e desigual,
fundamentado na prática da inclusão e do respeito a si mesmo, ao próximo e à
natureza.
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